Caxias do Sul 02/05/2024

Eros na escrita de Anaïs

Um mergulho atento nas nuances da literatura ímpar de uma escritora do proibido
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 18/06/2023 às 10:36:31
Eros na escrita de Anaïs
Escritora francesa deixou legado literário em forma de diários íntimos profundos, sensíveis e contundentes
Foto: DIVULGAÇÃO

POR MARILIA FROSI GALVÃO

Costumo mergulhar pelas águas profundas da literatura. E pelas correntezas de outras artes. Por mais que mergulhe, ou me deixe levar, há mistérios a desvendar.

Lá na escuridão, no silêncio, bem no fundo deste oceano infinito, faço o empréstimo de alguns tesouros-luzes – posto que de domínio público - e os trago comigo até as minhas emersões. Ou imersões - em viagens de leitora dentro de mim mesma: “Cartas. Diários.” Ou, a materialização de resgates históricos – de biografias – de vidas - de sentimentos – de descobertas. Ausências preenchidas. Volto à tona, por ora, com os Diários de Anaïs Nin.

(suspiro 1)

Como mulher-leitora-curiosa – debrucei-me sobre algumas obras dessa autora audaciosa: seus livros, especialmente os diários e histórias que a consagraram como uma renomada escritora em literatura erótica. Pelo menos no século XX, em uma sociedade patriarcal. Ora, os modelos de literatura nesse “subgênero” até então, eram searas restritas aos homens. Talvez, ainda nos dias de hoje.

Por isso admiro Anaïs Nin. Em minha opinião ela foi heroica, para dizer pouco. Destemida, escreveu textos eróticos em um tempo em que as mulheres sofriam pela falta de liberdade para se expressar e pelo abafamento. Foi uma das precursoras do feminismo (sem essa intenção) e da revolução sexual. O fio condutor de suas histórias é baseado nas relações sexuais e amorosas que experimentou em sua própria vida.

Penso que Anaïs inspirou a mulher a se engajar nessa busca de sua sensualidade, a saber quem ela é. E, como cada mulher é um ser único, deve procurar suas respostas pela introspecção e conhecer-se, observar-se quanto a seus hábitos e fantasias da imaginação e do corpo. Enfim, escreveu sobre o proibido. Quanto a isso, o proibido, ah, além de estimular a imaginação, é muito mais... muito mais... qual é mesmo o adjetivo para isso? Dou esta chance para meu leitor e leitora dialogarem comigo.

(sorriso 1)

Entendi a obra de Anaïs Nin ao ler a sua biografia e refletir sobre suas palavras, e as suas ideias e impulsos que eram como mergulhos: “Acredito que alguém escreve por precisar criar um mundo onde possa viver. Eu não teria como viver em quaisquer dos mundos que me foram oferecidos, ou seja, o mundo dos meus pais, o mundo da guerra, o mundo da política. Tive que criar um mundo só meu, como um clima, um país, uma atmosfera em que eu pudesse respirar, dominar e me recriar quando destruída pelo cotidiano.”

(pausa para pensar)

Angela Anaïs Juana Antolina Rosa Eldemira Nin y Culmel – nome artístico Anaïs Nin – nasceu em 21/02/1903 em Neuilly-sur-Seine, França. Morreu no ano de 1977 em Los Angeles, EUA. Seus pais eram cubanos: a mãe Rosa Culmel, dançarina, e o pai Joaquin Nin era famoso pianista e compositor. Durante a infância viajou pela Europa, acompanhando os pais, nas excursões artísticas, em saraus. Mas esta vida de sonhos acabou aos onze anos de idade.

O pai abandonou a família para casar-se com uma mulher muito mais jovem. A mãe de Anaïs resolveu morar nos EUA e ali, na viagem de navio rumo aos EUA que levaria um bom tempo, em alto mar - começou a sua saga como escritora, aos onze anos. Escrevia longas cartas ao pai, para convencê-lo a voltar para a família. Descreve o ambiente – as pessoas – e a saudade que sente dele. Cartas que a mãe nunca enviou. Porque poderiam perder-se.

Então, para consolar-se, a pequena Anaïs iniciou a escrita dos diários – e nunca mais parou. Ao longo de sua vida produziu sua escrita entre 1914 até 1977. São dezenas de diários, em que ela escreveu em tom intimista, para si mesma, sem nada esconder. Uma narradora de si mesma. Os famosos diários encontram-se em um Museu de Coleções em Los Angeles–EUA e são objeto de estudos acadêmicos: representam valioso documento sobre a importância literária, antropológica e psicanalítica do século XX. Esses diários ficaram muito famosos por mostrarem a angústia da mulher ocidental na luta por seus anseios em uma forma autobiográfica e de autoanálise crítica. De Anaïs Nin: “O leite que verte dos meus seios é psicanalítico além da análise, feito de solidariedade, compreensão de um vislumbre do destino alheio.”

(suspiro 2)

Compreendi melhor a obra de Anaïs lendo sobre sua vida. Quem sabe a vida que ela construiu chame mais atenção que sua obra? Estou dando outra chance aos meus leitores...

Obra em que a autora se mostra uma mulher à frente de seu tempo (Foto: Marilia Frosi Galvão)

Após ficar estabelecida em Nova York com sua mãe e dois irmãos menores, volta à Europa em 1923, casada com Hugh Parker Guiler – alto funcionário do City Bank – e habita em Louveciennes – perto de Paris. Essa época, a década de 1930, após os Anos Loucos, também me fascina. Foi um tempo em que artistas do mundo inteiro estavam em Paris. Tudo era esfuziante para o bem e para o mal. Muita arte floresceu.

Escritores – escultores – pintores – músicos – bailarinos – teatro – ideias libertárias pós-guerra – e Anaïs Nin ali, interagindo e sendo amiga de D. H. Lawrence (escritor da obra “maldita” O Amante de Lady Chaterley) – André Breton (escritor-poeta-teórico surrealista) Paul Éluard (poeta) e Jean Cocteau (poeta-romancista-cineasta). Todos vanguardistas e iniciadores de novos movimentos nas artes. E, dentre estes e outros, Henry Müller, escritor “maldito”, cuja primeira obra – Trópico de Câncer – foi prefaciada e financiada por Anaïs. Tornaram-se amantes.

Outra chance aos meus leitores: por acaso, assistiram ao filme homônimo ao romance (extraído dos diários) - “Henry e June”, com as atrizes Maria de Medeiros como Anaïs e Uma Thurman como June – a esposa de Henry Müller? Trata-se de um triângulo amoroso entre Anaïs – Henry – e June – a esposa de Henry. Filme excelente – roteiro inteligente – recomendo.

Desta publicação foi feito o filme, com o mesmo título (Foto: Marilia Frosi Galvão)

(Ah, sorriso 2)

Então, Anaïs se desvelou em ensaios – romances – ficção – mas o que realmente persistiu foram os Diários – cuja publicação a tornou famosa de 1966 em diante – neles ela escreveu com liberdade – pois era para si mesma – para conectar-se - conta episódios da sua vida – fala das relações que teve – e da própria visão de sexualidade – as angústias de uma mulher pós-psicanálise – defensora de um olhar íntimo para o autoconhecimento e emancipação. No livro “Anaïs Nin - Ser Mulher – e outros ensaios” ela afirma: “A postura dos homens escritores não atrai as mulheres – As mulheres desejam desenvolver uma escrita erótica distinta da masculina. Ou seja, ligar o erotismo à emoção, ao amor, à escolha de determinada pessoa, personalizar, individualizar, essa será a obra das mulheres. Será cada vez maior o número de mulheres dispostas a escrever com base nos próprios sentimentos e experiências.”

Outra chance aos meus queridos leitores – lembrando que as leitoras estão incluídas, visto essa ser uma regra da Língua Portuguesa, que prezamos.

Sensual ou erótico? Obsceno ou lascivo? Libidinoso ou pornográfico? Afetivo ou erótico?

(pausa para pensar)

Essa era a ideia, um impulso – um mergulho – o registro do mundo real, do vivido.

Confesso que, ao ler esses (poucos) livros de Anaïs, só me escandalizei em um momento: a história do “Incesto” como uma vingança – ao reencontrar o pai, já adulta – seduziu-o, e conta tudo no livro A Casa do Incesto – Diários não expurgados - e depois o abandonou, como uma “revanche” ao episódio mal resolvido por ele ter abandonado a família quando ela tinha 11 anos. Há divergências se foi ficção ou não.

Penso que alguns tabus devam permanecer para todo o sempre: o incesto e a pedofilia. Diria, e isto é polêmico, que no geral, exceto esse caso do incesto com o pai, a obra dessa escritora, em especial os diários, é literatura “algodão doce” se compararmos com algumas obras dos dias atuais. Ressalvo, porém, a subjetividade de cada pessoa. Isso conta muito, pois pode-se medir até onde vai o erotismo e começa a pornografia? Difícil dizer. Erotismo-o-implícito e pornografia-o-explícito? Por vezes está por um fio. Ou... as opiniões são inumeráveis.

Como mulher e leitora de Anaïs – percebi que o erotismo expresso está dentro de um contexto, de um ambiente, e em circunstâncias de afeto. Há harmonia. Cuidados com a cena e personagens. A prosa é sutil, há ironias sim. E metáforas. Ela não usa palavras de baixo calão, por assim dizer, e nomeia os órgãos sexuais pelo nome correto/culto (pênis x vagina). E, o que constatei como relevante e que ela me mostrou – a nós – que o erotismo leva ao prazer, mas sempre vinculado a sentimentos. Quanto a isto – há uma questão jamais resolvida: Afinal, o que querem as mulheres? Bem, se nem Freud chegou a uma conclusão, eu, Marilia, diria – tendo por base as leituras de Anaïs e outras – As mulheres querem ROMANCE (a maioria, pelo menos). Ou seja, presença, afeto, atenção, romantismo, respeito... e ao meu leitor e leitora deixo a continuidade dessa ideia.

Como visionária – Anaïs deixou um legado para a mulher: os seus Diários, mais de duzentos, fizeram muito sucesso entre jovens mulheres nos anos 1960, o que “bombou” a nova onda feminista. Assim, ela fez inúmeras palestras, entrevistas, prefácios, colaborações para a causa.

Muito apreciei os Ensaios publicados em 1976. No primeiro parágrafo do Ensaio O Erotismo Feminino ela nos diz: “Segundo minha observação pessoal, eu diria que a mulher não fez a separação entre amor e sensualidade da mesma forma que o homem. Na mulher, os dois costumam estar interligados. Ou ela precisa amar o homem a quem se entrega ou ser amada por ele. Depois do encontro íntimo, ela tem que estar segura de que se trata de amor e que o ato da posse sexual faz parte de uma troca, ditada pelo amor. Os homens se queixam de que as mulheres exigem confirmações ou expressões de amor. Os japoneses reconheceram tal necessidade e houve um tempo em que valia a regra absoluta de que, após uma noite de amor, o homem devia escrever um poema e fazer com que fosse entregue à amada antes que ela despertasse. O que era isso senão a ligação entre ato amoroso e amor?" O que, modestamente, chamei de Romance, ou sobre o que querem as mulheres.

Estes são os mais famosos e os mais lidos pelo mundo afora (Foto: Marilia Frosi Galvão)

Constato que, nos dias de hoje, pleno século XXI - as assertivas de Nin, acima expostas, estão configuradas no que se nomeia Literatura Hot – na trilogia dos 50 Tons de Cinza – escritos por uma mulher: Erika Leonard James, mais conhecida por E. L. James (nome sutilmente abreviado – para sugerir um nome que possa ser masculino, será??) e com os três filmes respectivos a cada volume. Li o primeiro livro e assisti aos três filmes. Sim, eles revelam a necessidade do que chamo de Romance – não considero pornografia, e sim, erotismo. Há controvérsias. Porém, lembro que se tornou uma “febre”, em 2011. Lembro também de ver amigas e outras mulheres não se esconderem para a leitura, e, por vezes andavam com o volume na mão, em público. Mais recentemente houve outra trilogia – 365 dias. Livros eróticos, publicação iniciada em 2021 – que deram origem a mais três filmes, embasados nessa Literatura, agora intitulada de Hot (quente), escritos por uma mulher – Blanca Lipinska – Polônia.

Bem, dentre suspiros, sorrisos e pausas a que submeti os queridos leitores que me acompanharam até aqui, façamos uma ode a Eros que, na mitologia grega era o Deus do Amor e do Erotismo. Eros – em grego – significava “desejar com muito amor”...

...e, em assim sendo, enquanto os homens amam olhar, nós, mulheres, amamos ouvir e tocar. Se Anaïs me visse agora... sorriria para mim, pois, nem fiquei vermelha, por dizer isso.

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista (Foto: Claudia Haupt)

mail galvao.marilia@hotmail.com

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