Caxias do Sul 23/09/2025

No côncavo de um ombro

Leitura de obra de autora italiana sinaliza que as derrotas precisam ser assumidas para que a vida possa seguir adiante
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 23/09/2025 às 08:39:45
No côncavo de um ombro
Foto: Marilia Frosi Galvão

POR MARILIA FROSI GALVÃO

“Pora grama”. A pobre coitada. Essa era a expressão usada por minha mãe, Olga, ao se condoer com a dor das mulheres que eram abandonadas ou negligenciadas pelos maridos. “Pora grama”!

Essa expressão vem a calhar com o livro que tem absorvido minha atenção por esses dias chuvosos de um inverno que se estende, obrigando-me ao recolhimento e à leitura, fator positivo. O título do livro é “Dias de Abandono” – da escritora italiana Elena Ferrante. Por coincidência – Olga também é o nome da protagonista –, personagem que tem tanto em comum com cada uma de nós – mulheres. Sentimos ciúmes, inveja, temos vergonhas e sim, muitas e muitas vezes, daríamos tudo para termos um ombro, um amparo.

Contrariando a Olga do livro, a Olga minha mãe foi “feliz” no casamento com meu pai, isto é, nunca se considerou a “pora grama”. Ele correspondeu às perspectivas de uma época em que os casamentos eram um compromisso para sempre: foi provedor, ”deu-lhe” seis filhos, honrou a família, foi um bom homem, trabalhador e, até o último dia de vida dele, levou o café com leite para ela na cama. Só depois disso a Olguinha enfrentava o dia, os afazeres domésticos, os seis filhos e, eventualmente, abrigava sobrinhos, os quais vinham do interior para fazer cursos aqui, na cidade grande.

Já, a Olga do romance, embora fictícia, não diria ser menos real que minha mãe, posto que é a narradora de sua história - fala de seu casamento acabado, depois de 15 anos de parceria, dois filhos e um cão. Com uma expressão triste, de lamento sincero, minha mãe diria: “pora grama”!!

“Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar.” Assim começa a narrativa. Vem-me à mente a palavra: desamparo. Olga ficou no desamparo. Ou, na concepção de minha mãe, estar desamparada por não ter casado ou por ser desquitada – após ser abandonada pelo marido – eram pequenas tragédias. Dentre seus maiores sonhos, enquanto mãe, era ver suas três filhas casadas – ou melhor – amparadas. Essa era a palavra usada por ela – amparadas. Como se...

Bem, gostaria, se pudesse, de dizer à minha mãe que, da geração dela para a minha, para a de minha filha, e minha neta, a sociedade sofreu transformações e grandes mudanças. A mulher, antigamente, era submissa ao marido e os divórcios eram raros. Hoje, a mulher trabalha fora de casa e o casal mantém uma postura de igualdade e a felicidade pessoal é um valor, posto que, caso haja divergências, os divórcios são o caminho natural.

Mas, há também os dias de abandono – como a Olga do romance de Elena narra na sua saga – apesar da dor, ela se recusa a ser a poverella – a pobre mulher abandonada. Nessa postura reside a diferença. Assumindo essa opção, ela precisa dominar obsessões, angústias e assumir a derrota para poder seguir adiante.

Admito que, dentre as piores dores emocionais, está a rejeição. Tanto aquela gradativa – que vai escurecendo a alma, tirando a vontade de viver, e as dúvidas: ele está mais frio, seco? É impressão minha? Esqueceu que me disse... Não me diz mais minha amada? Diz agora, só amada? Ocultou o pronome possessivo – minha? Os diálogos reduziram-se a poucas palavras? Começam as cobranças? A falta? A saudade? Ahh, por que não é mais como antes? Será que tem outra? A rejeição manifestando-se aos poucos.

E... a rejeição inesperada – como a Olga do romance queria entender: “Passei a noite refletindo, consternada, na grande cama de casal. Por mais que eu reexaminasse as fases recentes da nossa relação, não conseguia encontrar verdadeiros sinais de uma crise...”

Os sinais, ou não os percebemos, ou não queremos vê-los.

“Passou-se uma semana, e não só meu marido manteve a sua decisão, como a confirmou na forma de um impiedoso bom senso. No começo, passava em casa uma vez por dia, sempre na mesma hora, lá por volta das quatro da tarde. Cuidava das duas crianças, conversava com Gianni, brincava com Ilaria, os três juntos às vezes saíam com Otto, nosso cachorro, um pastor, bom como um santo, para passear com ele pelas ruas do parque e correr atrás de bolas de tênis e gravetos... eu fingia que estava ocupada na cozinha, mas esperava que Mario passasse por mim e me esclarecesse quais eram suas intenções, se tinha ou não desfeito o balaio de gato que estava em sua cabeça”.

Assim, como leitora, ao acompanhar o vazio em que Olga foi lançada e a urgente construção de uma libertação, a que ela não se furtou, e seguiu em frente, apesar das angústias e da dureza na narrativa... aprendi com ela que:

As derrotas precisam ser assumidas para que a vida possa seguir adiante, ou, aprender a suportar a dor e colocar em ação estratagemas para voltar a aceitar a vida.

Existir é isso. Um dia uma alegria eufórica, no outro, uma dor profunda.

A vida é banal e extraordinária ao mesmo tempo.

Quanto a mim, por mais independente que eu seja, gosto muito e não dispenso o abraço, o amparo no côncavo de um ombro.

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora, cronista e bruxa.

Tem dois livros publicados: "Fagulhas" e "Tudo é Momento".

(Foto: Severino Schiavo/Divulgação)