POR MARILIA FROSI GALVÃO
Assombrou-me constatar – em um vislumbre de consciência – o fato de que, ao longo da vida, nas tentativas frustradas de escrever um diário, eu tenha destruído os registros após a leitura do que foi escrito. Ainda hoje me questiono o porquê disso: seria o medo da perturbação ao encarar meu retrato íntimo, ou a vergonha que sentiria se outros o lessem?
Esse tipo de reação e reflexão ocupou minha mente em paralelo à leitura do livro Caderno Proibido – de uma das principais escritoras italianas do século XX – Alba de Céspedes (1911 – 1997). Um misto de arrependimento e de covardia me assolou nesse enquanto, pois constatei que eu mesma furtei-me deste espaço de algumas descobertas sobre a minha identidade – eterna estranha a mim mesma.
Ah, a literatura que me/nos salva. Defendo sempre esse conceito. Em meu caso, o ler e o escrever sobre o que mexe comigo nas obras literárias são como uma terapia, ou talvez, como diários escritos em minha mente, como brilhos fugazes de pequenas fagulhas em meu ser.
“Vejo as páginas em branco, repletas de linhas paralelas, prontas para acolher a crônica de meus dias futuros, e mesmo antes de vivê-los já fico perturbada. Sei que minhas reações aos fatos que anoto em detalhes, me levam a me conhecer mais intimamente a cada dia. Talvez existam pessoas que, conhecendo-se, conseguem se tornar melhores; eu, porém, quanto mais me conheço, mais me perco.”
A narradora desse diário é Valeria Cossati, mulher comum, casada há mais de 20 anos, dividida entre os papéis tradicionais de mãe, esposa e funcionária de um escritório, em Roma, nos anos 1950. Uma vida entediante – Michele, o marido, nem a chamava mais pelo próprio nome – Valéria, mas de “mamãe”, e os filhos com 20 anos – queriam viver suas próprias vidas, cuja relação com ela era marcada por conflitos... Não nego que, por vezes, ao ler os registros dessa personagem, revivi minhas relações com minha mãe, irmãs e filhos. Valéria julga o tempo todo o correto e o incorreto de suas ações.
26 de novembro de 1950:
“Fiz mal em comprar este caderno, muito mal. Mas agora é tarde demais para lamentar, o estrago está feito. Nem sei o que me levou a adquiri-lo, foi por acaso. Nunca pensei em manter um diário, até porque um diário deve permanecer secreto e, para isso, seria preciso escondê-lo de Michele e dos meninos. Não gosto de deixar nada escondido; além do mais, em casa há tão pouco espaço que seria impossível...”
Ah, quanto me irritou essa obsessiva autocrítica de Valéria. O quanto discuti com ela, em momentos tão chata e carola, sempre se culpando e se achando menos – baixa autoestima, submissa ao marido e às normas da sociedade, com o que os outros vão pensar, preocupações exageradas pelos filhos, e não se permitir ter um diário com paz e tranquilidade como seu confidente secreto, ao menos. Ah, Valéria tinha 43 anos de idade, apenas, e se achava velha... Felizmente, amadurecemos e rimos de nossa pobreza de espírito. No dia em que completei 40 anos, chorei o dia todo. Aos 43, meus filhos eram adolescentes. Hoje, muito tempo depois, me acho – ah – me acho menos feia, mais sábia, mais equilibrada.
Aqui preciso confessar algo entre parênteses (estou velha e chata – mas não sou velha – digamos: uma velha bruxa, intuitiva e observadora atenta. Por vezes engraçada, tanto que rio de mim mesma. Há diferença entre estar e ser, ah, estou e não sou. Pois, tenho me flagrado a falar sozinha – ao que meus filhos mexem comigo – então eu digo – estou em reunião – comigo mesma – ahhh – e, ao assistir aos filmes – dei para dar pitacos – e xingamentos – não é assim sua burra – ahhh – e – para completar - ainda faço caretas imitando os artistas – rio junto – beijo, aplaudo – dou conselhos que jamais são ouvidos, ahhh). E tem mais, isto se chama, pela ciência – sistema de neurônios-espelho. A bruxa (eu) se emociona com os filmes, chora, tem empatia, sensibilidade e conexão com as emoções humanas.
Confissão feita, para que meus leitores me entendam, agi dessa forma com Valéria, dialogando com ela à medida em que lia o seu diário. Aos poucos, as irritações e os conselhos deram lugar a um estado de observação e compreensão, pois ela é humana, tão humana, assim como eu ou qualquer pessoa. Passei, então, a torcer por ela. Percebi, conforme os fatos eram relatados no diário, o quanto uma personagem pode ser complexa – ao ponto de deixar de ser ficção e tornar-se tão real. Criar uma personagem feminina como Valéria é coisa de gênio. Realmente, Alba de Céspedes, uma das grandes romancistas do século XX e que influenciou autoras como Elena Ferrante, deve ser lida.
27 de dezembro:
“São duas da madrugada, levantei para escrever, não conseguia dormir. A culpa, mais uma vez, é deste caderno. Antes, eu esquecia rápido o que acontecia em casa; mas agora, desde que comecei a anotar os eventos cotidianos, mantenho-os na memória e tento compreender porque se produziram. Se é verdade que a presença oculta desse caderno dá um sabor novo à minha vida, devo reconhecer que não serve para torná-la mais feliz”.
Nesse ponto, percebe-se que Valéria vai tomando consciência de si, de sua personalidade e identidade e nota uma transformação em si mesma, cujas consequências ainda não pode prever, mas...
Acompanhar as confidências do “Caderno Proibido” nos leva a constatar as transformações de uma sociedade da época do pós-guerra, em Roma – os tabus e os preconceitos, a hipocrisia reinante, enfim, um recorte histórico. Alguns temas como a discussão do universo feminino ainda são atuais, assim como o papel da mulher no casamento, na sociedade e na responsabilidade por suas escolhas.
Fascínio. Verdadeiro fascínio é o que sinto ao ler obras literárias em forma de diário. Pois, esse tipo de escrita é subjetivo, sincero, ocorre enquanto os fatos são vividos. Assim como o Caderno Proibido – desta autora italiana – pouco conhecida no Brasil, há muitas outras obras secretas – primeiramente – e que se tornaram clássicos literários. Publicadas em vida ou póstumas.
“O Diário de Anne Frank” - por Anne Frank – um dos livros mais lidos do mundo. Relato íntimo e comovente de uma adolescente judia escondida dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, em uma perspectiva única do Holocausto.
Com vislumbres de suas vidas e processos criativos – inquietações e perturbações e relatos de suas viagens à própria vida interior, há obras que, além disso, são testemunhos históricos de uma época. Cito alguns – os que li – mas há muito mais: Fiódor Dostoiévski – escritor russo; Virginia Woolf – escritora inglesa; Franz Kafka – escritor tcheco; Sylvia Plath, escritora estadunidense; Anaïs Nin, escritora francesa...
“Quarto de Despejo – Diário de uma favelada” – por Carolina Maria de Jesus. Relatos da vida da autora e de sua família em uma favela de São Paulo. A pobreza, a fome e a luta pela sobrevivência de uma catadora de papel.
Resta-me, pois, declarar oficialmente que criei coragem e iniciei o hábito de escrever o meu diário – cujo teor jamais será divulgado. Penso que, depois do que li e aprendi com os grandes escritores clássicos, almejo aperfeiçoar a capacidade de contemplar, de observar o cotidiano, de estar comigo mesma, na minha intimidade, com lampejos de consciência, divagações, e tentativas de ficar em paz.

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora, cronista e bruxa.
Tem dois livros publicados: "Fagulhas" e "Tudo é Momento".
(Foto: Severino Schiavo/Divulgação)