Caxias do Sul 26/04/2024

Desejo súbito por siris serve de ingrediente para texto sublime na mesa de gênio da crônica

“Não sei se você se lembra”, de Stanislaw Ponte Preta, veio a público nos anos 1960 e segue atual no quesito genialidade narrativa
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 04/06/2020 às 19:53:34
Desejo súbito por siris serve de ingrediente para texto sublime na mesa de gênio da crônica
Sérgio Porto, cronista carioca que usava o pseudônimo "Stanislaw Ponte Preta"
Foto: DIVULGAÇÃO

Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto (1923 - 1968), foi escritor e cronista carioca, um dos mestres do gênero no Brasil. A crônica aqui selecionada, e que nos causa nostalgia devido à sua qualidade, saciando momentaneamente nossa fome por arte literária, foi publicada no ano de 1964 na coletânea “Garoto Linha Dura”.

NÃO SEI SE VOCÊ SE LEMBRA

Por Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)

Então, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita de comer siris. Havia anos que nós não comíamos siris e a vontade surgiu de uma conversa sobre os almoços de antigamente. Lembro-me bem — e não sei se você se lembra — que o primeiro a ter vontade de comer siris fui eu, mas que você aderiu logo a ela, com aquele entusiasmo que lhe é peculiar, sempre que se trata de comida ou de mulher.

Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os lugares onde se poderia encontrar uma boa batelada de siris, para se comprar, cozinhar num panelão e ficar comendo de mãos meladas, chão cheio de cascas do delicioso crustáceo e mais uma para rebater de vez em quando. E só de pensar nisso a gente deixou pra lá a vontade pura e simples e passou a ter necessidade premente de comer siris.

Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo, que era o campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava famosos festivais do apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos domingos, perto do Maracanã, havia um botequim que servia siris maravilhosos, ao cair da tarde. Não sei se você se lembra que ele frisou serem aqueles os melhores siris do Rio, como também os únicos em disponibilidade, numa época em que o siri anda vasqueiro e só é vendido naquelas insípidas casquinhas.

Ah... foi uma alegria saber que era domingo e havia siris comíveis e, então, nos dois — não sei se você se lembra — apesar da fome que o uisquinho estava nos dando — resolvemos não almoçar para ficar com mais vontade ainda de comer siris. Passamos incólumes pela refeição, enquanto o resto do pessoal entrava firme num feijão que cheirava a coisa divina do céu dos glutões. O pessoal — aliás — achava que era um exagero nosso, guardar boca para um siri que só comeríamos à tarde, porque podíamos perfeitamente ter preparo estomacal para eles, após o almoço.

Mas — não sei se você se lembra — fomos de uma fidelidade espartana aos siris. Saímos para o futebol com uma fome impressionante e passamos o jogo todo a pensar nos siris que comeríamos ao sair do Maracanã.

Então — não sei se você se lembra — saímos dali como dois monges tibetanos a caminho da redenção e chegamos no tal botequim. Então — não sei se você se lembra — que a gente chegou e o homem do botequim disse que o siri já tinha acabado.

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