Caxias do Sul 05/05/2024

Vivemos a morte para encontrar a vida

Como ocorreria a evolução da humanidade se não morrêssemos?
Produzido por Neusa Picolli Fante, 16/04/2024 às 08:44:44
Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas
Foto: Morgane Coloda

Uma parte de mim foi dizendo tchau, a outra ficou numa atrapalhação sem igual, me remexendo inteira, como terremoto, não sabia a hora que ia acalmar.

Tudo que aprendi até ali foi sacudido, foi sendo bagunçado até conseguir me restituir... Assim fui seguindo com a presença e ausência que minha mãe constantemente adentrava.

Gosto muito da crônica “As mães não deveriam morrer”, de Eliane Brum, que me cativa pelo que me provoca e pelo gosto que deixa em mim. Questiono apenas no que reverbera em mim, e digo, como pode as mães não morrerem se morrem os filhos, os tios, os amigos, e tantos outros?

Se as mães não deveriam morrer, também não deveriam envelhecer. E seus filhos como cresceriam, se desenvolveriam, se tornariam pais e mães? O seguir adiante, as mudanças, os ciclos e o fluir da vida, como seria? Permaneceríamos sempre no mesmo lugar, aprendendo as mesmas coisas sem parar... Se não morrêssemos não seria vida: seria parada, estacionada. A evolução da humanidade como aconteceria?

Penso que morrer sim, mas antes, acompanhar a infância, adolescência e por que não, início da vida adulta dos seus e deixar neles um legado pleno, de ser amado, desejado. Também deixar impresso que o seu filho tem valor por onde andar. Esses são os maiores registros que podemos deixar. Eu, enquanto mãe, também devo morrer e deixar essas marcas...

Morrer ou não morrer nem é a questão fundamental, pois a ida pela vida, inclusive atravessando a eternidade, faz com que nos experimentemos nesse grande universo.

Refiro-me aque a morte pode não ser tão triste como aparenta, se conseguirmos enxergar os encontros sem igual, que podem acontecer antecipando a morte, inclusive o acreditar na vida após. Existe algo muito triste nas mortes em vida, ou nas vidas sem sentido, sem direção.

Minha mãe teve a direção e o propósito, e hoje sei muito mais disso. Eu, filha, encontrei junto com ela o nosso propósito (meu e dela juntas daquele momento), no dia a dia, nas aflições dos últimos anos, no tentar compreender o que não desejava ver, ou viver, mas não tinha saída, nem escolha.

Já pensou os filhos irem e as mães ficarem? Elas merecem encontros, se não, ficam incompletas por toda eternidade.

No entanto, não vou vitimar as mães que deixaram explícito ou não esse tchau, com valor, com estímulo para o filho seguir. Muitas ainda precisam construir raízes significativas em si e nos seus eternos meninos e meninas; independentemente da idade. Também vi a falta delas, em crianças que se gestaram sem esse olhar, e eu sinto que tem uma falta enorme ali. Esses contrastes é que atrapalham o meu pensar...

De qualquer maneira, vale ser. Não eterna fisicamente. Sim, sempre, terna nas lembranças de quem fica.

Fizeram o que tinham que fazer – “bora que a vida anda e o universo comanda”. Isso me faz ver que a minha também está andando e eu também enquanto mãe, sigo...

E junto com todas as mães que fizeram sua parte, quando chegar a minha hora e terminar meu legado, vou.

Filhos morrem depois dos pais, esse é o meu segundo adendo... Juntando com o dos pais que morrem dizendo tchau, dizendo que amam os seus, e também que aquele filho é um ser de valor... O que mais poderiam dizer, deixar além de potencializar os seus para a vida?

Acompanhei muitas mães que perderam seus filhos e sei, senti seu desejo pelo reencontro. Elas merecem ter aqui e acolá muitos e profundos encontros.

Desejei muito a lucidez pra minha mãe, pra ela poder dizer tchau. E, sim, teve esse tchau comigo, numa longa conversa de afeto, num momento de lucidez. Para as minhas irmãs, também teve de outra maneira, mas o importante é que todas nós tivemos...

A minha despedida com ela valeu o momento, o estar ali e guardar dentro de mim essa mãe que mudaria, mas raízes desse encontro me alicerçariam diferente a partir dali...

Entre minhas mãos acomodava a mão dela, num cuidado que estava nascendo cada vez mais sereno, como uma fagulha de luz que nasce na escuridão... Enquanto estávamos ali sentadas debaixo da grande árvore, ela de cadeira de rodas e descontente por estar naquela situação... falamos da vida, dos feitos e dos abertos.

Recordei quantos sonhos tive com meu pai, antes de ele partir – eu na fila com ele, acompanhando-o para entrar no céu... E agora pensava maneiras de auxiliá-la, visto que o momento se aproximava e não queria que nos engolisse nem a mim e nem a ela.

Ali, repensávamos como era esse entrar nos céus. Brinquei com a ideia de encontrar um lugar seguro além mundo de várias maneiras e com a noção de que de nada adiantaria ficar batendo na porta do céu se ninguém a abrisse, de que precisávamos nos preparar para ir e que um dia ia acontecer, e assim fomos seguindo e rindo das nossas divagações...

Se isso ajudou, não sei, mas sei que refletimos juntas, que fizemos muitos ensaios, tentativas para ela encontrar um lugar seguro além vida... e só saberei quando nos encontrarmos para tomar aquele café que tanto desejo nos céus, ou em qualquer outro lugar do universo que nos pertence, desnudas de consciências e de verdades.

Muitas pessoas me disseram na partida dela: “agora é você que precisa ler o que escreve”. Sim, necessito e acrescento que foram nesses instantes difíceis que a teoria e a pratica se confrontaram na minha vida. Entre tantas perdas, vivi a dor da perda da lucidez da minha mãe com muita dor. Muito antes da sua morte, esse luto não reconhecido conheci inteiro. Ali precisei me nutrir de tudo que sabia para continuar com esperança. Entrei fundo como costumo orientar... Senti cada vírgula dos meus escritos. Em algumas dores, mergulhei profundamente;em outras, a compaixão me embalou e assim fui escrevendo, construindo, criando, mas todas fixaram residência em mim...

Desejo do fundo do meu coração que todas as mães possam dizer tchau, que, no último instante, no derradeiro adeus, deixem o último registro de valor que podem deixar para seus filhos, que nessa despedida se construa o amanhã deles, mais firme, num seguir tranquilo e com direção.

E hoje, olhando pra trás, percebo que tiveram vários dizeres da minha que se encaixam nesse “deixar o valor impresso”, seja quando disse que tinha orgulho das mulheres que nós, suas filhas, nos transformamos. Ou, quando fui fazer-lhe companhia e estava muito cansada, deitei na cama ao seu lado. Ali, sonolenta, senti uma coberta se estendendo sobre mim. Quem cuidava de quem ali? Ainda sinto o afeto a me aconchegar. Essas e muitas outras são as recordações que guardo na caixinha que carrego comigo para sempre.

Quanto à minha mãe, que tanto procurou e desejou ir para casa, muitas vezes procurava dentro da própria casa esse lugar, que ela adentre nas moradas que existem do pai maior e que ela desenvolva maneiras de continuar sua jornada. Isso faz parte das muitas moradas que existem na casa do pai, reflexão que ouvimos várias vezes, quando fomos orar por ela, de pessoas e crenças diferentes, no limiar de sua morte, e reforçou a nova casa dela. Assim, quando ela morreu, voltou pra casa que tanto desejava...

Fica em mim que fomos além da dor, além do que poderíamos supor. Vivemos a morte para nos encontrarmos com a vida, e ela palpita em nós... O cuidado de alguém, além fronteiras, se fez presente, e isso faz meu olho brilhar...

Meu maior desejo é que fagulhas da mãe que deixa bons registros nos acompanhe sempre e pra sempre...

Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas. É palestrante e escritora, autora de oito livros: três de psicologia, três de crônicas e dois de poesia.

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