Caxias do Sul 08/05/2024

Se beber, não dirija!

Jovem escritor carioca iniciou carreira homenageando musas inspirado em cálices de conhaque
Produzido por José Clemente Pozenato, 25/07/2020 às 09:13:02
Foto: Marcos Fernando Kirst

Relendo as poesias dispersas de Joaquim Maria Machado de Assis, dei de frente com um poema exaltando o conhaque. Na época, em 1856, ainda se escrevia com a grafia francesa. No título, Machado acrescentou à palavra um ponto de exclamação seguido de reticências, para dar destaque e deixar suspeitas em aberto. Ficou assim:

COGNAC!...

Quando escreveu o poema, o ainda desconhecido Joaquim Maria estava para completar dezessete anos. Outros tempos, com outras leis! (O poema tem data de 12 de abril de 1856, e Machado nasceu a 21 de junho de 1839). Passo ao leitor duas estrofes, a primeira e a última, em que aparece o tom empolgado do jovem poeta, mesmo não usando rimas:

Vem, meu cognac, meu licor d’amores!...

É longo o sono teu dentro do frasco;

Do teu ardor a inspiração brotando

O cérebro incendeia!...

*****

Que poeta que sou com teu auxílio!

Somente um trago teu m’inspira um verso;

O copo cheio o mais sonoro canto;

Todo o frasco um poema!

Na terceira estrofe, Joaquim Maria informa também como ele gostava de beber o conhaque: Tomado com o café em fresca tarde. Como no Rio de Janeiro as tardes frescas são raras, é de imaginar que ele passasse o verão inteiro sem seu querido “licor d’amores”.

A dose de inspiração contida em um cálice do "licor d´amores"

Faço essa observação baseado em experiência pessoal. Estava eu no Rio de Janeiro, num mês de julho, participando de um Seminário de Língua e Literatura. O evento, no começo, era realizado em janeiro. Um abaixo-assinado dos participantes conseguiu que fosse transferido para o “inverno” carioca.

Naquela oportunidade, presenciei a seguinte cena: estava eu no Teatro João Caetano, à noite, para assistir a uma peça moderna, com a plateia quase vazia. Duas senhoras na fila de cadeiras à minha frente olhavam para os lados e para trás, estranhando a ausência de público. Uma delas falou: “Por que será que veio tão pouca gente?” A outra respondeu: “Também, com um frio desses!” O frio era de mais de vinte graus, tanto que eu estava em mangas de camisa...

O jovem escritor Joaquim Maria, que ficaria mais conhecido pelo sobrenome

Nesse mesmo inverno, fui ver um filme no bairro de Botafogo – na realidade, dois filmes, porque havia um cinema ao lado de outro – e, ao voltar para o centro, despencou uma chuvarada, também típica do clima carioca. Desci do ônibus e fui debaixo de chuva até um bar, bem no Largo da Carioca, e pedi um conhaque, para me prevenir de algum resfriado.

O moço do balcão foi até a prateleira e voltou com uma garrafa de conhaque Dreher. Isso mesmo, um conhaque produzido em Bento Gonçalves, parece que o primeiro feito no Brasil. O que ele me cobrou por um cálice – disso eu me lembro também – daria para comprar um litro aqui em Caxias. Como na época do jovem Machado de Assis só havia cognac francês, devia sair bem cara uma dose para tomar com café numa tarde fresca. Ou molhada.

As poesias dispersas de Machado guardam outras pedras preciosas. Um desses poemas tem o título de “Teu Canto”. É dedicado “A uma italiana” e começa com esta epígrafe do autor:

É sempre nos teus cantos sonorosos

Que eu bebo inspiração.

Por aí já dá para imaginar o tom do poema. Essa italiana deve ter sido uma diva cantora de ópera, tipo de espetáculo que, nesse ano de 1855, já fazia parte da programação cultural da corte. Na época, as companhias líricas italianas faziam ponte entre o teatro Colón, de Buenos Aires, e o teatro Dom Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro.

A soprano Carolina Marea, por exemplo, fez sucesso lá e aqui como protagonista da ópera “La sonnambula”, de Vincenzo Bellini, compositor muito estimado na segunda metade do Novecento, em que predominava o espírito romântico. Não duvido que seja ela a cantora italiana homenageada pelo jovem Machado de Assis. O jornal La Nación traçou dela este perfil: “voz aguda y ligera, con poco volumen, pero de gran virtuosismo”. Com todas as condições, portanto, para o poeta principiante beber inspiração.

Dom Pedro II, promotor das temporadas de ópera e de peças teatrais no Theatro Imperial do Rio, encantou-se também com uma atriz dramática italiana, Adelaide Rístori. Tive a honra e o prazer de ajudar a organizar uma edição dessa história. Mas isso fica para uma próxima conversa.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.

e-mail: pozenato@terra.com.br

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