Caxias do Sul 27/04/2024

Salamaleque: na mina das palavras

Sempre tive muita curiosidade pela origem das palavras. Elas nos aprontam muitas surpresas
Produzido por José Clemente Pozenato, 12/06/2020 às 16:27:00
Foto: Marcos Fernando Kirst

POR JOSÉ CLEMENTE POZENATO

Estava eu em Marselha, num fórum de universidades ligadas de alguma forma ao mundo cultural Mediterrâneo. Para início de conversa, o céu lá é tão azul que aquela canção gauchesca – não há, não há céu mais azul / que o céu do Rio Grande do Sul – foi escrita por alguém que nunca pisou na Provença. Não por acaso, a sua costa marítima tem o nome de Côte d’Azur!

Nessa ocasião, aconteceu de me encontrar numa roda de professores argelinos. A Argélia, todos sabem, fica no Mediterrâneo e, mesmo tendo sido território francês, e continue falando francês, tem uma tradição árabe indestrutível. Tanto que, em francês, o nome do país é Algérie: em árabe, Al-djazâr, que significa “terra cercada pelo mar”.

Na roda de conversa, o assunto derivou exatamente para essa tradição, e eu tive a ousadia de dizer que a língua portuguesa possui um vasto estoque de vocábulos de origem árabe. Um professor perguntou se eu poderia dar um exemplo e, com todo aprumo, eu disse:

- Salamaleque!

Os três professores argelinos fizeram uma reverência em conjunto e, em coro, falaram:

- Salam aleiq!

Foi uma festa, como não podia deixar de ser. E aí passei a enumerar algumas palavras nossas iniciadas em al; almoxarife, alaúde, alcaçuz, algaravia, almofada... E, a cada palavra que eu dizia, um deles retrucava com a pronúncia original em árabe.

Salamaleque, em português, significa rapapé, exagero na saudação. Em árabe, Salam aleiq significa “a paz esteja contigo”, e é sempre uma saudação feita em tom cerimonioso. Daí o sentido que o vocábulo ganhou na nossa língua.

Sempre tive muita curiosidade pela origem das palavras. Elas nos aprontam muitas surpresas. Por exemplo: as palavras “cátedra” e “sessão” possuem a mesma raiz indo-europeia: sad, que significa lugar para sentar. Aí, o que aconteceu? Os gregos inventaram de pôr o advérbio katá como prefixo, para designar um lugar privilegiado para sentar: a cátedra ou, numa derivação popular, cadeira. A cátedra para o catedrático e a cadeira para o aluno!

Já os latinos mudaram o som de sad para sed, o que acabou gerando o vocábulo sedere, que significa sentar, e sédia, que significa assento. E a palavra sessão? Pois a sessio do latim significa o ato de sentar. Convocar para uma sessão é, portanto, convocar para sentar...

Mas nem sempre há concordância. Há quem imagina que cadeira não é uma corruptela de cátedra, e sim deriva do latim cadere, que significa "cair". Deonísio da Silva, por exemplo, concorda com essa opção.

Deonísio da Silva começou como professor na Universidade de Ijuí e encerrou a carreira docente no Rio de Janeiro, na Universidade Estácio de Sá. Doutor em Letras pela USP, é também romancista, contista e cronista. Dois romances dele que chamaram a atenção foram A Cidade dos Padres, de 1986, quase contemporâneo de O Quatrilho, e Avante, soldados: para trás. A veia do humor sempre está presente nas suas narrativas. Manteve por anos uma coluna na revista Caras. E o assunto foi sempre o mesmo: de onde vêm as palavras.

Resultado dessa maratona foi o livro De onde vêm as palavras – origens e curiosidades da língua portuguesa, um sucesso editorial. Tenho em mãos nada menos que a 17ª edição, publicada em 2014. São quase 500 páginas de flores verbais, cultivadas por esse “jardineiro das palavras”, como o denominam os editores.

Obra de Deonísio da Silva oferece surpresas sobre o universo das palavras

Mesmo na montagem do que pode ser visto como uma enciclopédia de etimologia, a linguagem de Deonísio da Silva mantém um sabor descontraído, característica de seu estilo. Uma excelente obra para satisfazer nossa permanente curiosidade sobre a viagem que cada palavra fez até chegar à língua que falamos.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.

e-mail: pozenato@terra.com.br

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