Caxias do Sul 22/11/2025

No silêncio da noite, ele encontra seu novo caminho

Pode ser ali que as almas encontram seu lugar, seu caminho, seu destino
Produzido por Neusa Picolli Fante, 05/11/2025 às 09:48:11
Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas
Foto: Morgane Coloda

Uma novidade foi instalada na pequena cidade. Não mais se ficaria velando o corpo do ente querido toda a noite. E isso causava estranheza, descontentamento de uns, concordância de outros.

Alguém lhe disse: “é no silêncio da noite que ela encontrará seu novo caminho...”, e isso serviu para acalmar seu coração. Sim, é nesse silêncio que quem partiu encontra o valioso caminho para a nova morada. De volta para sua maior morada: a mais antiga, a mais acolhedora.

É ali, penso eu, que pondera o dizer “deixe os mortos virem buscar os seus mortos”. Foi assim que enxerguei o que acontecia e, diante da dúvida de deixar sua mãe passar a noite sozinha na capela mortuária, viu-se numa interrogação. Sentimento de culpa a alcançava, queria passar a noite junto ao corpo sem vida. Iria com ela, se possível, mas sabia que não era.

Esse tempo de se despedir é pouco ou é todo o tempo? Cada um do seu jeito vai criando suas despedidas do seu jeito e como se constrói seu entendimento, pois é o tempo de conexão espiritual.

Para ela, era tempo de serenar após anos de cuidado muito intenso. Numa atrapalhação de tarefas, acreditava que deixá-la sozinha era abandoná-la, era não amá-la.

Nas despedidas, o deixar quem se foi passar a noite sozinho, muitas vezes, é compreendido como abandono ao ente querido morto, porém, esse é o tempo dele, é o momento de ele conectar-se com a subida, com o ir além, com deixar virem buscá-lo e lhe mostrarem seu novo caminho.

Até porque, no meio de muita gente falando, trocando recordações, como construir um mundo à parte do ruído presente, das conversas? Assim observava, todos falavam, se encontravam, trocavam lembranças e dialogavam sobre a vida, e alguém ali precisava de silêncio para se conectar, para se despedir, para simplesmente compreender o que estava acontecendo.

Sim, os dois momentos são sublimes: tanto o do silêncio, quanto o das conversas. Os dois dialogam com o momento. No entanto, vamos ressaltar que pode ser no silêncio da noite que as almas encontram seu lugar, seu caminho, seu destino. Deixe-as encontrarem seu novo lugar.

E vamos observar que cada indivíduo está inserido em uma determinada cultura, história e pelas questões pessoais que permeiam e vamos integrar tudo isso. Assim, cada um age com o que é do seu mundo e conforme a sua necessidade.

Foi nessa reflexão que adentrei em lembranças e lembrei do grande cemitério do Cairo – Egito, que visitei pouco tempo atrás e que ainda me impactava a informação de que em torno de 150 mil vivos habitam nele. Dividem o espaço mortos e vivos. Informação do guia local que nos acompanhou na viagem.

Fiquei imaginando os vivos morando no mesmo espaço que os mortos, numa densa mistura de mundos e consciências. Como isso acontece? Até porque, às vezes, entre os vivos, almas procurando alento vagueiam. E entre os mortos, será a mesma procura? São pessoas necessitadas que criaram espaço ali entre as lápides. Famílias que ali se instalam e criam uma favela, diferente da que conhecemos.

Permeia um “eu fui assim” ao mesmo tempo em que, do outro lado da vida, surge um “vou ser assim”, misturando a vida e a morte.

Sabe-se, no entanto, que esse olhar que perpassa mortos e vivos não contempla a todos. Somente veem os que têm os olhos e a alma preparados para esse olhar.

Imaginei a convivência e os aprendizados. Atrapalhações haverá, sem dúvidas. Tudo a se ensaiar e eu a me inebriar nessas reflexões do grande aprendizado chamado viver e conhecer novas maneiras de ser e de se relacionar.

Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas. É palestrante e escritora, autora de oito livros: três de psicologia, três de crônicas e dois de poesia.

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