Caxias do Sul 19/04/2024

UM CONTO DE FADA ÀS AVESSAS

A saga inesquecível de Maria Antonieta, a última rainha da França, revisitada sob o olhar de uma amante dos livros
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 12/08/2022 às 14:18:25
UM CONTO DE FADA ÀS AVESSAS
Biografia da rainha francesa, escrita por Stefan Zweig, motivou longas horas de leituras, movidas a chá e reflexões
Foto: Marilia Frosi Galvão

Por MARILIA FROSI GALVÃO

Ao subir os degraus do patíbulo, para cumprir a pena de morte pela guilhotina, acusada de alta traição, esgotamento do tesouro nacional e conspiração, Maria Antônia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena, arquiduquesa da Áustria e rainha consorte da França e Navarra – mais conhecida como Maria Antonieta - haveria de lembrar-se de um outro dia, o 14 de maio de 1770, distante no tempo há anos: o dia em que foi oficialmente entregue à França, aos 14 anos de idade, para casar-se com o neto de Luís XV - Luís Augusto de Bourbon –, futuro Luís XVI.

Ela era ainda criança, com o cabelo loiro muito claro, olhos azuis acinzentados e travessos. Esse dia ocorreu após um longo percurso por todo o centro da Europa – em duas semanas e meia de viagem. 57 carruagens acompanharam-na. De Viena a Versailles. Ao final dessa viagem, ela desembarcou da carruagem de ouro e veludo para começar o seu destino de mulher.

Ao subir os degraus do patíbulo, ela estava com 37 anos, os cabelos totalmente brancos. Vestida com um modesto vestido branco, um véu de mousseline no pescoço e uma touca. E assim, mostrou aos dez mil franceses furiosos que a xingavam e queriam a sua cabeça... como morre uma Habsburgo.

Ao subir os degraus do patíbulo, ela o fez com a mesma leveza com que subia os degraus do Château de Versailles. Recusou ajuda e pediu desculpas ao carrasco por ter pisado, sem querer, no seu pé. Com o olhar no horizonte, acima daquela gente odiosa, foi posicionada sob a lâmina... e záz.

Este foi o final de um conto de fadas às avessas – ninguém foi feliz para sempre. Era o dia 16 de outubro de 1793 – em plena Revolução Francesa.

Quadro de Maria Antonieta, no Castelo de Versailles, na França (Foto: Marilia Frosi Galvão)

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O que nos é devido, chega a nós, e nos surpreende. Estejamos sempre atentos, pois. Aconteceu que, ao bisbilhotar um sebo virtual, estava disponível uma biografia de Maria Antonieta – última rainha da França, da autoria de Stefan Zweig, escritor austríaco, grande intelectual dos anos 1920 e 1930, cuja escrita me encanta, prende, fisga o leitor atento. Alguns dias depois, recebi o livro (editado em 1936) e traduzido para o português em 1938. Por isso, a ortografia “do tempo antigo” (bellezas – enthusiasmo – espectaculo). Folhas amareladas. Alguns furinhos de traças. A capa se soltando, quase apagada pelo tempo. (Há edições modernas). A leitura fluiu ao ponto de eu pressentir a quase presença física de Maria Antonieta - uma mulher “comum”, como eu, com a abissal diferença: ela arquiduquesa-rainha e eu, plebeia...

Stefan Zweig, elogiado por Freud, revela-se um profundo conhecedor da alma de uma mulher, e assim refere-se à Rainha - “... mulher comum, não particularmente esperta, não especificamente insensata, nem fogo, nem gelo, sem especial inclinação para a bondade e sem nenhum apego ao mal, a mulher mediana de hoje, ontem e amanhã, sem pendor para o demoníaco, sem ânsia pelo heroico e, talvez por isso, tema pouco adequado à tragédia.” (ZWEIG, 2013, p14). Fiquei a pensar, que o destino, ou a História, colocaram Maria Antonieta à prova, e ela foi obrigada, pelas circunstâncias, a amadurecer e reconhecer seus erros – e no final... ser uma heroína? Ou mártir? Ou exemplo? Um mito? Enfim, deixar, assim, de ser uma mulher comum? E, se a História me pusesse em alguma situação extrema semelhante à de Maria Antonieta... como eu, mulher comum, reagiria?

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Precisei de muitos dias em silêncio para ler esta obra. Configurei uma rede de conexões enquanto avançava na leitura e fiz descobertas que fizeram sentido para mim. Afirmo – este foi um dos melhores livros que li em minha vida!! Assim, sigam-me, querida leitora e (também querido) leitor. Vou contar tudo.

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Se há algo que me fascina é tentar entender o Universo – mesmo que impossível. Amo observar a natureza e contemplar o céu em suas nuances de mudanças contínuas. O tempo e os caminhos do Homem. A História. As histórias de amor reais ou fictícias. As novidades que surgem, as mudanças, os desaparecimentos, o que subsiste e o que se repete. Esse fascínio também se estende aos cálculos, às datas, ao checar os números e as coincidências e seus significados. Seriam os sinais que o Universo me dá.

O psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875 – 1961) usou o termo sincronicidade para explicar situações coincidentes. E as há em nossas vidas. Por exemplo: pensou em alguém que não vê há tempo... e o encontra na rua “casualmente”. Parece magia, não é mesmo? Jung conceitua que – numa situação como essa – existe uma conexão entre os envolvidos. Ele explicita que este elo é a sincronicidade. Não é mera casualidade. É uma força do Universo atuando para que as pontas soltas se juntem.

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A poça d’água ainda estava congelada à tardinha. Observei-a pela manhã, tentei quebrar o gelo com o pé. Ora, que bobagem, pisar numa poça de gelo, quando a dois passos está a entrada principal ao Château de Versailles – a morada dos reis da França. Naquela manhã gélida (5 graus negativos) daquele domingo em visita ao complexo do Château de Versailles, mal sabia eu que seria outra pessoa ao final do dia. E a poça d’água? Permaneceu congelada.

Então, passados 11 anos desse episódio, em que lá estive – 2011 –, a leitura da biografia de Maria Antonieta, de Stefan Zweig, foi-é como um despertar. Revisitei mentalmente o espaço e os ambientes onde Maria Antonieta viveu e casou, com 14 anos, e o marido, com 16, tornou-se adulta, enfrentou uma corte preconceituosa, fofoqueira, falsa, bajuladora, com regras para tudo, nenhuma privacidade, pompa e falsidades, luxo e rituais cansativos a serem repetidos o tempo todo, enorme aglomeração de pessoas para vê-los comer – vestir-se –, os lençóis examinados... para dizer o mínimo – e –, esse casamento por interesses políticos levou sete anos para ser consumado.

Ela preencheu esses anos em futilidades, modas, penteados, idas a Paris, com suas damas de companhia e seu cunhado - irmão mais jovem que Luís XVI, bailes de máscaras, e mais. Até que, finalmente, Luís XVI conseguiu vencer barreiras psicológicas que o impediam de concretizar relações físicas com Maria Antonieta e, inclusive, um simples caso de fimose – que foi resolvido cirurgicamente, porque houve muita pressão para o rei decidir-se. O papel de Maria Antonieta era, principalmente, o de dar herdeiros ao trono.

Assim, teria sido natural, ou não, que Maria Antonieta, antes de tornar-se mãe, quisesse encontrar um lugar para chamar de seu, onde ela ditasse as ordens e o espaço seria restrito somente aos convidados. Pediu ao rei que lhe desse de presente o Petit Trianon, um palacete anexo, que ficou conhecido como Le Domaine de Marie-Antoinette. Ali ela passava grande parte do seu tempo, em uma vida mais simples, longe da ostentação do palácio. Porém, com muita diversão, apresentações de música, teatro, do qual ela participava como atriz e festas privadas. Gastou muito na renovação do Petit Trianon, mandou construir um Templo do Amor e tantos luxos mais, jogos, bebidas, doces, banquetes. Aquele espaço foi mais importante para Maria Antonieta que todo o resto da França com seus vinte milhões de súditos. Refugiava-se ali para não ser perturbada e para se divertir, jamais para pensar e refletir.

O Templo do Amor - que Maria Antonieta mandou construir nos domínios do Pétit Trianon, em Versailles, em homenagem ao amor, quando ela engravidou do primeiro filho (Foto: Marilia Frosi Galvão)

Mal sabia ela que esse afastamento lhe custaria a vida e a coroa. Segundo seus biógrafos, ela foi o bode expiatório da Revolução Francesa. Presa e julgada por acusações sem provas concretas. O déficit da França foi por má administração e vacilos de Luís XVI, pois a França estava endividada e os luxos extravagantes continuavam, enquanto o povo passava fome para sustentar tudo isso.

Assim, seria de se esperar uma revolução. A Revolução Francesa – “Liberté – Egalité – Fraternité”. Como todos conhecem a História – esse foi o “princípio” da República.

Se... minha leitora e leitor me acompanharam até aqui... revelo por que fiquei, também, amorosamente envolvida com a história da vida da Maria Antonieta: eu a percebi como uma menina despreparada para reinar, uma jovem inexperiente que não teve amizades sinceras, aproveitaram-se de sua bondade. Porém, tornou-se uma mãe extremosa. Mudou radicalmente. Abandonou os antigos hábitos, quando teve suas crianças, e uma das preocupações era alimentá-las saudavelmente. Uma mulher que respeitou o marido e, apesar de serem muito diferentes – o Rei a amava. Renegou todas as amantes que lhe eram oferecidas. Não há provas de infidelidade por parte da rainha, pois, pelos depoimentos registrados, ela jamais esteve a sós, com o grande amor de sua vida – amor platônico – ou nem tanto como insinuam alguns biógrafos – o Belo Fersen.

Como é de minha essência vibrar com histórias de amor, relato brevemente, a história do amor entre Maria Antonieta e o nobre e militar sueco: Conde Hans Axel Von Fersen – cuja amizade entre eles durou 20 anos até a morte dela. Conheceram-se quando tinham, os dois, 18 anos, em um Baile de Máscaras em Paris. A Corte Francesa o respeitava. Ele e Maria Antonieta se correspondiam de maneira codificada. Quando ela foi presa, ele fez de tudo para salvá-la, quase o conseguiu na famosa fuga de Varennes, mas a família real foi reconhecida e recapturada. Nunca a abandonou. Ela foi o amor da vida dele. E ele foi o amor da vida dela. Relato aqui – alguns pequenos trechos ou frases da correspondência decifrados, pois eles se comunicavam por códigos. Os historiadores franceses ficam em cima do muro – não afirmam – também não negam – se foram amantes de fato ou se foi amor platônico... Que permaneçam os mistérios! Neles está o encanto.

“Vivo e existo apenas para amar você.” Em uma carta de Fersen para Maria Antonieta.

“Meu amado – meu queridíssimo amor – eu te amo loucamente”, escrito em carta de Maria Antonieta para Fersen – e cito este trecho que tocou minha alma romântica, referindo-se aos olhos do amado: “olhos de um hazel indefinido”. (olho hazel = cor de avelã, muda frequentemente do castanho para o verde – e vice-versa, conforme a luz).

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Três séculos nos separam. Mas, o que é o tempo?

Maria Antonieta nasceu no dia 2 de novembro (de 1755). Também nasci no dia 2 de novembro. Por sermos do mesmo signo, e mesmo dia, penso que houve uma coincidência neste fato e, baseada em meu sentir, creio ter tido algumas luzes sobre o seu modo de pensar. Sou Maria também (Marilia é uma derivação de Maria), e tenho lá meus reinos. Ou arrogância ou pretensão, mas é um fato que me tocou. Uma mulher comum, assim como eu.

A autora deste ensaio, conectada com a alma e a leveza da ex-rainha, através dos séculos (Foto: Claudia Haupt)

Maria Antonieta conheceu aquele que seria seu marido aos 14 anos de idade. E comigo, aconteceu assim: com 14 anos, em um domingo à tarde, estava eu reunida com as amigas no térreo da casa Siana, ali na esquina da Júlio com a Guia Lopes. O casarão foi tombado. Pois, ouvi um som de buzina, olhei em direção a um carro que passava, e, de dentro daquele Simca Chambord, um rapaz me atirou um beijo. - Ai, que amor!!!! E a Liane me disse – e tu sabes se é pra ti? Nove anos depois, casei com “o tal rapaz”.

Aos 14 anos de idade, eu ainda brincava com bonecas, presumo que Maria Antonieta também.

Desde sempre, foi vaidosa, gostava de se enfeitar, das modas, da música, do teatro, da literatura, de amamentar e cuidar de seus filhos, de bailes, de curtir as noites em Paris, de ter amigos, não gostava de política... – e eu também.

Ah, e a recorrência do número 2 em outras coincidências em minha vida seriam um capítulo à parte. Definitivamente – o “dois” me persegue.

Pela leitura atenta e emocionada desta obra, outras coincidências me assombraram:

20 de junho de 1791 – fuga da família real organizada por Fersen (já o conhecem) disfarçado de cocheiro. Infelizmente foi malograda – Fersen nunca perdoou a si mesmo por ter obedecido a uma ordem de Luís XVI, naquele dia da fuga, deixando a Maria Antonieta em perigo – “Ah, por que não morri por ella em 20 de junho?”

20 de junho de 1810 – a morte de Fersen – quase 20 anos depois – em um conflito - parece ou não parece que o Universo o ouviu? “Mas o destino gosta de analogias e aprecia o mysterioso jogo das datas”, diz Zweig, na página 426.

20 de junho de 2022 – foi exatamente esse, o dia em que concluí a leitura dessa biografia. Eu a li como se lê um romance – tal o arrebatamento que a escrita de Zweig me causou.

Pois muito bem,

Não se pode provar a existência da sincronicidade. Mas não se pode negar. Escuto a voz interior – a intuição – exercito a mente – estou sempre atenta ao contexto que me cerca. Uma música. Os livros nas vitrines. Anúncios publicitários. Uma mensagem de alguém. Acredito que, utilizando os sinais que o Universo me oferece, eu possa, talvez, utilizá-los em meu favor.

Em tudo há o fio (invisível) da sincronicidade. Por caminhos independentes do tempo e do espaço, construí conexões com Maria Antonieta – até que ela subisse os degraus do patíbulo. O final de um conto de fadas às avessas. A Rainha foi morta.

Este livro é outra biografia de Maria Antonieta, escrito por Antônia Fraser.
O filme Maria Antonieta foi baseado nesta biografia - com a atriz Kirsten Dunst e produzido por Sofia Coppola. Foi rodado no Palácio de Versailles com autorização especial do governo francês. Os figurinos são deslumbrantes e a trilha sonora é um mix de músicas clássicas e músicas modernas – pop.
(Foto: Marilia Frosi Galvão)