Caxias do Sul 29/04/2024

O amante de Marguerite

Forma peculiar de narrativa da escritora francesa permite vislumbres únicos do interno e do externo de quem a lê
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 16/04/2024 às 10:14:03
O amante de Marguerite
Marguerite Duras e a escrita como salvação do abismo pessoal
Foto: DIVULGAÇÃO

Por MARILIA FROSI GALVÃO

Nada mais se pode dizer. Nada. Tudo já foi dito. Pensado. Refletido. Discutido. Escrito. Lido. Esculpido. Pintado. Filmado. Fotografado. Ou... imaginado!! No mais, onde encontrar o novo? Mas, ah, um novo prazer estético pode ser um problema de atenção? Em um mundo de prazeres, conforme Contardo Calligaris, psicanalista ítalo-brasileiro, “essa dádiva está ao alcance de quem souber prestar atenção.”

Vejamos, pois,

Anos se passaram desde aquela insone madrugada em que eu, navegando pela Internet, deparei com um documentário. Nele, Marguerite Duras (1914-1996), escritora, dramaturga e cineasta francesa, já bem idosa, falava sobre seu passado tempestuoso. Entremeava a entrevista dada a uma pessoa tocando alguns acordes em um piano. Marguerite em sua casa. No centro de uma área enorme. Com um bosque. Pelo interior da casa, vasos com as flores ressequidas, talvez com a água podre. No decorrer da fala ela justificou - sentiria remorso se as jogasse fora - um dia tiveram vida. Falou sobre a solidão da escrita, essa solidão é, ou a morte, ou o livro. “Não posso não escrever. A escrita me salva do abismo”. Disse também que “escrever é também não falar – é calar-se. É gritar sem fazer ruído”. Falou ainda sobre os livros noturnos e livros diurnos. Esse acaso, nessa insone madrugada, que me apresentou Marguerite, assombrou-me fortemente.

Com a curiosidade aguçada iniciei minhas descobertas sobre esta escritora desde então. O primeiro livro que li foi “O Amante”. Obviamente um livro “noturno” – com camadas que alternam vários passados com o presente, porque ela o escreveu aos 70 anos – relembrando fatos de sua infância e adolescência, quando ainda morava no Vietnã (antiga Cochinchina – ou Indochina Francesa). É um livro autobiográfico – aliás como a maior parte de sua obra. Este livro de memórias surgiu de uma montagem de fotos que seu filho reuniu para uma reportagem e observou a falta de uma da adolescência de Marguerite. Isso fez com que Duras mergulhasse em suas memórias e escrevesse “O Amante”, o qual foi publicado em 1984: uma tumultuada história de amor entre uma jovem da colonização francesa na Indochina e um rico comerciante chinês – ela com quinze anos de idade e ele com 27 anos – em um tempo anterior à Segunda Guerra – em que os preconceitos eram exacerbados em relação a castas e raças, um chinês e uma branca jamais poderiam relacionar-se. Ressalte-se também os conflitos dela com a família – personagens ambíguos e complexos. Por esta obra, ganhou o Prêmio Goncourt – maior prêmio literário francês.

(Foto: Marilia Frosi Galvão)

Aos meus leitores atentos – não posso omitir esse fato: como a autora escreveu este livro de memórias por fotos, o fato interessantíssimo é que ela inicia por uma foto que não existe – a de quando ela tinha quinze anos e meio – “...Só Deus a conhecia, essa imagem não podia ser de outra forma, não existe. Foi omitida. Foi esquecida. É a essa falta de ter sido registrada, que ela deve sua virtude, a de representar um absoluto. É, portanto, durante a travessia de balsa de um braço do Mekong entre Vinhlong e Sadec, na grande planície de lodo e arroz do sul da Cochinchina, a planície dos Pássaros. Desço do ônibus, vou até a murada... sempre desço do ônibus quando estamos na balsa, porque sempre tenho medo que os cabos cedam, que sejamos arrastados para o mar...” (pág.13 – O Amante ). A jovem neste cenário – a foto não clicada.

“O homem elegante desceu da limusine, ele fuma um cigarro inglês. Olha a jovem com chapéu masculino e sapatos dourados. Aproxima-se devagar. Visivelmente intimidado. De início não sorri. De início oferece um cigarro a ela. A mão treme. Há essa diferença de raça, ele não é branco, ele deve superá-la, por isso treme. Ela lhe diz que não fuma, obrigada... Ele sente menos medo. E diz que parece estar sonhando. Ela não responde... Ele repete que é absolutamente extraordinário encontrá-la nessa balsa... Diz que o chapéu lhe cai bem, muito bem mesmo, que é... original... um chapéu de homem, por que não? Ela é tão bonita, pode se permitir qualquer coisa... Ele diz que está voltando de Paris, onde fez estudos, que também mora em Sadec. E que é chinês, que sua família vem do norte da China... Você me permitiria conduzi-la à sua casa em Saigon? Ela concorda. Ele diz ao motorista para pegar as bagagens da jovem no ônibus e colocá-las no carro preto.” (pág.31)

Outro acaso, neste ano de 2024 – fez com que eu relesse “O Amante”. E lesse, em sequência, “O Amante da China do Norte”, da mesma autora – em uma segunda versão mais detalhada, ou melhor, como deveria ser o roteiro do filme “L’Amant”, segundo ela. Admitiu ter aceito a filmagem pelo dinheiro. A bordo deste encantamento literário, assisti, novamente ao filme “O Amante” – ou “L’Amant” – ou “The Lover” – de Jean-Jacques Annaud do romance homônimo – lançado ao público em 1991. Me encantou novamente, agora ainda mais. Indicado ao Oscar e ao César, é um filme imperdível, ótimos atores e fotografia belíssima. Ouso discordar de Marguerite em um ponto, ela almejava que as cenas de sexo nos encontros dos amantes fossem mais sutis, menos explícitas, mais veladas. Não sendo uma expert em linguagem cinematográfica, apenas como uma espectadora comum, afirmo que essas imagens me tocaram, transmitiram a exata emoção dos amantes, a tristeza e a dor que sentiam pelo amor que tinha data para terminar. A tensão do amor impossível, roubado. Segundo minha percepção, o filme é belo como um todo e os demais personagens representam muito bem os conflitos dessa história real, vivida por Marguerite, em 1929, em um Vietnã colonial. (No Prime)

(Foto: Marilia Frosi Galvão)

Como não é novidade aos que me leem, aprecio a literatura francesa. Marcel Proust, Gustave Flaubert, Anaïs Nin, Annie Ernaux e Marguerite Duras são escritores que me cativaram: dos quais li as obras e escrevi textos sobre. Crônicas com um toque de ensaio e também de resenha. E, quanto à Marguerite, ela esteve presente em mim até hoje por meio de leituras e filmes. Após esses anos todos, os quais não consigo precisar... mais de uma década, desde aquela madrugada...

Talvez seja polêmico lembrar que, segundo o ponto de vista citado anteriormente de que não se pode criar o novo nas artes e na literatura, posto que tudo já foi escrito, observei que as escritoras Marguerite Duras e Annie Ernaux utilizaram o mesmo recurso: a escrita inspirada em fotos. Leituras como um folhear de um álbum de fotografias por semelhanças entre suas obras-primas: “O Amante” de Marguerite Duras deu a ela o Prêmio Goncourt e “Os Anos” de Annie Ernaux deu-lhe o Prêmio Nobel – 2022. Desconheço que tenham se conhecido pessoalmente, de alguma forma foram contemporâneas, mas tenho a certeza de que se visitaram pelas obras literárias e premiações e admiraram-se mutuamente. A questão seria – Annie inspirou-se em Marguerite – pois esta o fez primeiro. Seria polemizar afirmar isso? Bem, as duas foram escritoras transgressoras e partilharam dos mesmos ideais. Viveram intensamente, abraçaram lutas feministas e políticas e tiveram amantes bem mais jovens do que elas, dentre outros tantos aspectos.

Nos dias de hoje, pela vida interessante e intensa que Marguerite viveu, e que certamente influiu sua obra (mais de 50 textos entre livros e peças teatrais e 19 filmes), pois ela viveu a guerra – a fome – casamentos – divórcios – livros – política – ela seria “nomeada” como: comunista, feminista, militante, revolucionária, influencer, rebelde, resiliente, empoderada... nomes aos quais tenho restrições, porque não são mais utilizados conforme seu real sentido. Foram banalizados e deturpados. Empoderada, por exemplo, ficou irritante até de ouvir, porque assim também intitulam mulheres que usam cílios postiços enormes, unhas longuíssimas, dentre outras aberrações. O empoderamento de Marguerite está na força de sua obra na literatura e no cinema.

Se... é verdadeira a afirmação de que tudo já foi dito, escrito, pensado... de uma forma ou de outra, em cadeias históricas, em especial no fazer literário, defendo o ponto de vista de que - sim – tudo pode ser repetido – porque é real e original o modo que pensamos e o como o registramos em nossos escritos. Podemos calar-nos ou dizermos, assim mesmo, do nosso jeito. A literatura é um terreno em que todos podem plantar, não existe esse monopólio.

Portanto, em um mundo de prazeres literários, pincei Marguerite Duras, que inspirou Annie Ernaux, que inspirou...

Encontrei o novo no repetido, porque prestei atenção.

Enfim.

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista em Caxias do Sul.

(Crédito da foto: Claudia Haupt)

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