POR MARILIA FROSI GALVÃO
O Ler. Verbo substantivado pelo artigo “o”. O Ler. Com esse recurso da língua portuguesa, reitero o inefável da palavra ler. O Ler.
Lemos uma expressão facial, lemos uma pintura, uma fotografia, o céu, a vida... Tudo é texto. Tudo é leitura. Lemos os silêncios, ou os ruídos do mundo. Lemos nas entrelinhas de um romance. Lemos as palavras também, em seus sabores e suas nuances. Lemos tudo o que se nos apresenta.
Seletivos, lemos, sobretudo, o que nos interessa, ou o que nos diga algo de que precisamos. Por isso, apresento ao meu leitor essa ideia: o ato de ler desperta (ou contém em si) o eros – o erótico. Não sexual. Sim para o sensual, o emocional, intimista e prazeroso nos textos escritos... aos quais me entrego literalmente à escuta, ao riso e às lágrimas. Torno-me cúmplice do autor.
Ahhhhhh, como leitora ávida, dou-me esse direito – abocanho palavras que me deslumbram – que cintilam – e que – em um texto-contexto – me proporcionam ora prazer, ora gozo. O ler me faz uma sonhadora. Me ajuda a viver. Há notáveis conexões entre a vida e a literatura. Que maravilha estar no mundo. E... pelas obras clássicas, inesgotáveis em leituras e releituras, torno-me leitora de mim mesma – como disse Proust. A gente se envolve em insinuações e revelações de nós mesmos.
E, por falar em Marcel Proust, utilizo-o como uma perfeita comprovação da eroticidade do ler. Estou tragando “Em Busca do Tempo Perdido” – pela segunda vez – lentamente... posto que uma leitura de gozo vai muito além do mero prazer. O gozo é o prazer redobrado. Leitura que vicia – por isso utilizei o verbo tragar. No Volume II – intitulado “À sombra das raparigas em flor” – na página 436 – o autor – aqui em um pequeno excerto – descreve suas primeiras impressões ao ver um grupo de moças – as “passantes que detiveram seus olhos”:
“Sozinho, fiquei simplesmente diante do Grande Hotel, aguardando o momento de ir ter com minha avó, quando, quase ainda na extremidade do dique, onde faziam mover-se uma estranha mancha, vi que se aproximavam cinco ou seis mocinhas, tão diferentes, no aspecto e nas maneiras, de todas as pessoas com quem estávamos acostumados em Balbec, como o seria, chegado não se sabe de onde, um bando de gaivotas que executa na praia a passos medidos – as retardatárias alcançando as outras num voo – um passeio cuja finalidade se antolha tão obscura aos banhistas, a quem elas não parecem ver, quão claramente determinado por seu espírito de pássaros.”
Leituras assim densas – as leituras de gozo – são-nos oferecidas pelos clássicos – paraísos literários – em que nós, leitores, adentramos – nos jogamos de cabeça. Ahh, todavia, para que não desperdicemos essas chances de encantamento, é preciso que saibamos por onde começar e do que necessitamos. O que é luz para nós. Onde está o nosso coração para irmos ao encontro com o que o outro – no caso o escritor – está dizendo. Somos alguém que lê alguém. Como intermediário entres esses alguéns – o texto.
Foi assim que fiquei apaixonada por alguns autores e autoras – aquela relação: uma leitura puxa outra. Li Proust – releio Proust – e tantos outros autores e autoras de várias nacionalidades. A leitura dos clássicos sempre é inesgotável em si mesma. Pois, nas releituras, tornam-se outras obras com novas facetas não captadas em uma primeira leitura.
Existe uma relação entre a vida e a literatura. Nas palavras de Vargas Llosa, um dos maiores escritores latino-americanos – “A literatura não é algo que nos faça felizes, mas ajuda-nos a defendermo-nos da infelicidade”.
Sobre essa relação entre a vida e a literatura, a autora iraniana Azar Nafisi produziu uma obra original “Lendo Lolita em Teerã – Memórias de uma resistência literária”. Por esse livro, Nafisi nos conduz à intimidade da vida de oito mulheres que precisam encontrar-se secretamente para explorar a literatura ocidental proibida no Irã. Por dois anos, Nafisi e mais sete jovens liam “Orgulho e Preconceito”, “Madame Bovary”, “Lolita” e outras obras clássicas proibidas... “Para todas nós, aquela sala tornou-se um lugar de transgressão. Que mundo maravilhoso era aquele! Sentadas ao redor da grande mesa de centro repleta de flores, nós entrávamos e saíamos dos romances que líamos. Olhando para trás, fico maravilhada de ver o quanto aprendemos, mesmo sem ter consciência disso. Pegando emprestadas as palavras de Nabokov, experimentávamos o modo como as pessoas comuns podiam transformar suas vidas em algo valioso por meio do olho mágico da ficção”. (“Lendo Lolita em Teerã”). Obra apaixonante e poética – mas que também ajuda a entender os sangrentos conflitos do Irã com o vizinho Iraque.
Continuo, pois, ponderando, e confesso aos meus leitores que ainda não sei aonde irei parar – pois, esse texto é um louvor à eroticidade do ler. Não é uma crônica, nem um conto, nem um ensaio... tal a amplidão do tema. Poderia ser um tratado, desde a sabedoria dos séculos, desde a antiguidade, desde a Bíblia, e assim, eu escreveria páginas e páginas sobre como a literatura é um guia para a alma, de como ela expande a sensibilidade, do poder transformador da leitura... enfim, antes que se torne um tratado... fiquemos na reflexão sobre o quão erótico é o ler.
Em 2013, na FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty –, assisti à fala de uma escritora nascida em Paris, filha de pais iranianos: Lila Azam Zanganeh – professora de Literatura e Cinema em Harvard. Adquiri o livro dela, cujo título tão sugestivo, confirma o que estou a defender: “O Encantador – Nabokov e a felicidade".
Por certo, meus leitores já ligaram os pontos entre “Lendo Lolita em Teerã”, de Azar Nafisi, e “O Encantador – Nabokov e a felicidade”. Duas obras que contemplam a obra-prima de Vladimir Nabokov – “Lolita” – um dos romances mais importantes do século XX – que narra o amor obsessivo de Humbert Humbert, um cínico intelectual de meia-idade, por Dolores Haze, Lolita, 12 anos, uma ninfeta que desperta seus desejos mais agudos.
Assim, na obra de Lila Azam – a obra e vida de Nabokov –, ela as relaciona com a felicidade: “foi aí onde descobri a própria textura da felicidade. A literatura – e Nabokov em particular – tornou-se não um manual, mas uma experiência com a felicidade”. O encantador é um estudo sobre o prazer da leitura de qualquer grande livro – é o registro de uma aventura, diz Lila, e cada um dos quinze capítulos traz uma ideia de felicidade – na visão nabokoviana da felicidade e da beleza. “Lemos para reencantar o mundo”. Frase de Lila que é uma resposta clara à curiosidade do leitor criativo – aquele que é companheiro do sonho do escritor e que observa os mínimos detalhes. Associo essa postura do leitor a Eros, o mais antigo dos deuses, cujo bater das asas toca nos seus pensamentos e o leva adiante pelos caminhos da leitura. E, ouso aconselhar: não se compra a felicidade – mas pode-se comprar livros.
Nesses tempos de intensa comunicação, informações em excesso e redes sociais, há muitas superficialidades, inverdades, militância... há um empobrecimento intelectual. Desse modo, “en passant”, grande parte das pessoas passa os olhos, pensa que lê, não interpreta e isso é uma lástima.
Por outro lado, felizmente, há uma cultura do ler – do prazer do ler. Há cursos online – laboratórios de leitura, oficinas literárias, clubes do livro, lives, filmes sobre livros, saraus em livrarias, estantes de livros em restaurantes, cafeterias e mais.
Em assim sendo,
Se... Eros tem uma fome inexplicável, que se torna presente em nós...
Se... Eros é pulsão da vida...
Se... Eros representa o desejo de viver, de crescer, desenvolver, aprender, refletir, amar, ser feliz, procriar e criar...
Leiamos para “reencantar nossas vidas” - pelo prazer de ler o texto e entender.
Afinal,
Gememos de dor... e de prazer também!
E, em contraponto às muitas superficialidades nas redes sociais, ao empobrecimento intelectual, à rapidez de tudo, até na leitura de frases pela metade – infernos literários – conteúdos duvidosos e militantes... há, sim, há a boa literatura.
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista. Tem dois livros publicados: "Fagulhas" e "Tudo é Momento".