POR MARILIA FROSI GALVÃO
É bem verdade. Mulheres são bruxas. Pois. São mães do mundo. Não só pelo fato de procriarem. São irmãs, tias, avós, professoras, médicas, escritoras... Bruxas que dão à luz e luzes. Ensinam. Curam. Conhecem os sinais do Universo e decifram a natureza. Olham no espelho de manhã e encantam-se a si mesmas. Ávidas por desvendar o desconhecido.
Desafiadoras das convenções impostas pela sociedade – as modernas feministas – as bruxas atuais – com grande força interior. Estão soltas no Instagram e nas praças. São bruxas-mulheres-livres que apontam o dedo. Enfeitiçam com palavras e atitudes. Têm a cabeça nas estrelas. São intuitivas. Têm o dom da Visão. Carregam as dores de até 7 gerações. Comprovadamente, está no DNA. A imagem da bruxa é o símbolo de poder feminino.
Mulheres são bruxas. Isto é um elogio. Defendo enfaticamente essa afirmação.
Era uma vez,
No início da voragem dos Tempos...
No jardim do Éden...
Lá vivia Lilith – figura da mitologia judaica, retratada como a primeira esposa de Adão. Como ela se recusou ser submissa, abandonou o Jardim do Éden.
Depois veio a Eva. E ainda depois, ao longo de séculos, um número incontável de tantas outras que...
...também recusaram a submissão, queriam exercer suas escolhas e serem livres para aprender e utilizar seus conhecimentos. Por isso foram perseguidas, condenadas e queimadas vivas em fogueiras. A multidão gritava: - Brucia! Brucia! (Bruciare é um termo italiano = queimar.) A crença (dos perseguidores covardes) era a de que, assim, suas almas jamais seriam ressuscitadas no julgamento final. A história nos mostra que essas execuções ocorreram com mais intensidade no período entre os séculos XV e XVIII, na Europa e colônias americanas. Joana d´Arc, na França, foi o julgamento mais notório, em 1431.
Segundo historiadores – essa prática não passou de uma ditadura da Igreja, contra outras crenças ditas pagãs – contra o acesso do povo ao conhecimento – principalmente as mulheres. Era inadmissível que mulheres viúvas ou solteiras – que se mantinham sozinhas – “desviadas das normas sociais” – vivessem em áreas rurais e tivessem conhecimento em medicina herbal. Usavam as ervas da floresta e tinham poderes de observação. Em verdade, eram sábias curandeiras – por isso consideradas “estranhas à sociedade”. Ora, enquanto um homem que fizesse unguentos e medicamentos era chamado de boticário, a mulher que fizesse a mesma coisa corria o risco de ser chamada de bruxa.
A caça às bruxas – comandada pela Igreja, em especial no período da Inquisição, foi uma forma de controle social, as mulheres subjugadas por serem mulheres com sabedoria – não podendo praticar profissões consideradas masculinas. Elas – as mulheres – eram consideradas bruxas se questionassem seu lugar de servidão e dependência do homem. Ah, isso incomodou muito a Igreja Católica. Se, e isto é polêmico... se, as inquisições foram baseadas em ódio de gênero, estariam “justificados”, hoje, os crimes de feminicídio?!
Até os dias de hoje, muitos séculos depois, continuam sendo criaturas mágicas. As mulheres. Buscam o conhecimento e acabam sendo diferentes e desafiadoras. Tudo pela liberdade de expressão. Pagaram altos preços por essa luta. Até com a própria vida. Obviamente conquistaram muitos direitos – mas em muitos países desse mundo descontrolado, ainda são tratadas como escravas – como objetos descartáveis...
Porém, por mais que sejam injustiçadas, percebo as mulheres como deusas. Musas. Sacerdotisas. Poetas. Ou bruxas. Se preferirem o termo bruxa – vejo a imagem delas como plena de sexualidade e poder feminino. Bruxas são as que têm conexão com a natureza. Andam em equilíbrio com a Lua e as marés – fato revelador: os ciclos menstruais médios da mulher a cada 28 dias e o ciclo lunar – a cada 28 ou 29 dias não são coincidência. Bruxas têm uma Visão sagrada. São protetoras. Guias. Curadoras. Preparam os alimentos para a família no altar da cozinha – o coração da casa. Deixam comidinhas na geladeira. Têm o “dedo verde”. O sorriso constante no rosto. Escutam o vento. Falam com os bichos.
Poderia enumerar uma infinidade de tipos de bruxas. Tantas quanto o número de mulheres. Posto que, cada uma é singular. Assim, neste ponto de reflexão me vêm à mente as Bruxas Literárias. As que nos enredam em suas tramas - as genuínas contadoras de histórias.
Então, não é por acaso que me vêm à mente algumas visões de um passado distante e outras de um – também passado – mas recente. Ah, as visões – as lembranças – os marcos – os portais, as brumas... ou névoas... Ou.
À época do passado distante, visualizo uma bruxinha adolescente, magrinha, cabelos longos e ondulados até a cintura, com um creme-cosmético-grudento nos cílios para que crescessem (pequena bruxaria) – sentada em um poltrona – com os pés em um banquinho – posição confortável para horas e horas de leitura. Na mesinha ao lado um copo d’água e um pratinho com frutas – lembro bem das uvas. O único “probleminha” que ela (eu) poderia ter: segurar o xixi o máximo que desse – para não interromper a leitura de – “As Brumas de Avalon” – da escritora norte-americana Marion Zimmer Bradley.
Nessa saga, composta por 4 volumes – a autora reconta a lenda do Rei Artur, as batalhas e guerras que ele enfrentou para unificar a Grã-Bretanha, as intrigas na política e o conflito entre o cristianismo e os cultos pagãos. Ah, pois, com muita imaginação, essa autora dá voz às mulheres próximas ao Rei Artur. Em suas vidas e visões, elas se tornam as contadoras das histórias dos reinos: Camelot e Avalon. A rainha Guinevere, mulher de Artur (Gwenhwyfar), Igraine – a mãe de Artur, Viviane – a Senhora do Lago (Grande Sacerdotisa de Avalon), Morgana - a irmã de Artur – (Morgana das Fadas – ou a bruxa – a feiticeira).
Assim, nesse contexto imaginário, acompanhei a evolução das glórias e traições, em uma Bretanha real e lendária – e em uma ilha fictícia – o reino de Avalon, entre sonhos e visões, sacerdotisas, druidas, o Mago Merlin, encantamentos, bruxarias, ritos, crenças. Ali ancorei, uma adolescente leitora que, por inocência e desconhecimento da história, nesse período de vida, acreditava que o Rei Artur tivesse existido verdadeiramente... ahhh, mas era tão bom estar nesse mundo de imaginação, que era desagradável parar a leitura para fazer xixi. Além disso, eu era demasiado jovem para entender o que hoje – neste passado recente – ressignifiquei - ao retomar a obra. Consciente de que o Rei Artur é uma lenda – na realidade – (ele existe, de uma certa forma) interpreto que Guinevere, Igraine, Viviane e Morgana vivam em nós, ainda e sempre. Pois as mulheres de todos os tempos idos e as de hoje têm a Visão – a capacidade de ver o interior da mente dos homens e mulheres, a intuição, o sexto sentido ou outro nome. Enfim, essa é a nossa magia.
Para não perder o fio, ainda no recente passado – outras bruxas literárias me assombraram, além das já comentadas acima. Refiro-me a outras incríveis contadoras de histórias – repito - bruxas literárias. Hahammm!!! As mulheres selvagens.
Forte isso não? Agora, nós, mulheres, além de bruxas, somos selvagens???
A analista, psicanalista junguiana e contadora de histórias (e poeta) norte-americana Clarissa Pinkola Estés, na obra “Mulheres que correm com os lobos” – Mitos e histórias do arquétipo da Mulher Selvagem, é assim apresentada:
“Os lobos sempre rondaram o universo da psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estés, em sonhos ou mesmo na vida real. Ao estudar esses animais, ela observou várias semelhanças entre a loba e a mulher, principalmente no que se refere à dedicação aos filhos, ao companheiro e ao grupo. Ao longo do desenvolvimento da civilização, porém, estes instintos mais naturais – a que ela dá o nome de Mulher Selvagem – foram sendo domesticados, sufocando todo o potencial da alma feminina.”
Na releitura dessa obra, posto que ela é um poço profundo, recorri às minhas anotações a respeito disso, quando participei de uma jornada com a psicóloga e contoterapeuta Simone Corso. E lembranças antigas foram acionadas. Voltaram a ter vida. E senti a presença da mulher selvagem em mim, ou eu nela. Essa presença evocada a partir de mitos, contos de fadas, lendas e outras histórias de folclore que ligam os atributos da Mulher Selvagem: La Loba, Os 4 rabinos, Vasalisa, A mulher esqueleto, O patinho feio, O zigoto errado, Os sapatinhos Vermelhos, A donzela sem mãos, A menina dos fósforos... e outras histórias, acionaram o meu feminino, a minha alma.
Associo a figura da bruxa – da fada - da sacerdotisa – da mulher deusa-rainha em “As Brumas de Avalon” com a da mulher selvagem - instintiva – a que tem o poder místico de revigorar sentimentos aparentemente mortos – que corre livremente – que desenterra os ossos – que busca conhecer sua alma e potencialidades em “Mulheres que correm com os lobos”.
Dou ênfase a uma palavra constante nas duas obras: Visão. Tanto as bruxas – as fadas – quanto as mulheres selvagens (instintivas) possuem, ou podem treinar, o poder da Visão – mais ou menos como um revitalizar, acionar lembranças antigas ou perceber/captar cenas de rara beleza, ou ainda provas da natureza.
Por meio da Visão, embora tenham sido situações transitórias, vivenciei a presença da Bruxa, ou La Loba, ou da Mulher Selvagem em mim. Senti que algo mexeu profundamente em mim quando estava grávida e sentia os movimentos dos bebês. Tive dois filhos. Amamentá-los foi um tipo de relacionamento que me fez renascer. Eu via, antevia que eles seriam pessoas boas. Já deparei com paisagens indescritíveis – e uma em especial tocou na essência do meu ser – foi no momento em percebi a energia de alguns morros lá em Canela – distraída – sentada na mureta do Hotel Laje de Pedra... ouvi vozes e risos das mulheres do século XVIII – na parte histórica de Salvador...
Enfim, a Visão nos chega por sons, por imagens, por paisagens, por palavras escritas ou faladas, por histórias contadas pelas Bruxas Literárias.
É bem verdade. Mulheres são bruxas.
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora, cronista e bruxa.
Tem dois livros publicados: "Fagulhas" e "Tudo é Momento".
(Foto: Severino Schiavo/Divulgação)