POR MARILIA FROSI GALVÃO
Eu chorava. E soluçava. Sempre que pronunciava essas palavras – em voz de criança carregada pela emoção:
“Há milhões e milhões de anos que as flores fabricam espinhos. Há milhões e milhões de anos que os carneiros as comem, apesar de tudo. E não será sério procurar compreender por que perdem tanto tempo fabricando espinhos inúteis? Não terá importância a guerra dos carneiros e das flores?.”
Na representação da peça adaptada do livro “O Pequeno Príncipe” – de Antoine de Saint-Exupéry (1900 – 1944).
“E se eu, por minha vez, conheço uma flor única no mundo, que só existe no meu planeta, e que em um belo dia um carneirinho pode liquidar em um só golpe, sem avaliar o que faz – isto não tem importância?”.
No tempo de ouro das escolas públicas – elas eram uma referência educacional –, no Instituto Estadual de Educação Cristóvão de Mendoza – que abrigava a Escola Normal Duque de Caxias –, outra magnitude em preparação de professores de Ensino Fundamental.
“Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla. Ele pensa: “Minha flor está lá, em algum lugar... Mas se o carneiro come a flor, é para ele, bruscamente, como se todas as estrelas se apagassem! E isso não tem importância!?”.
E punha-me a chorar. As lágrimas eram reais. Tornara-me o principezinho.
Era nos anos sessenta. Ao concluir os estudos ginasiais em 4 séries, no Cristóvão, dito assim carinhosamente, ingressei no Curso Normal (Magistério). Então, com a idade de quinze anos eu, aparentemente, possuía algo que os meus professores viam em mim e hoje penso: se as condições da época me permitissem, talvez me tornasse atriz. Suponho – porque sonhava com tantas coisas. Se, eu tivesse uma chance de voltar àquele tempo...
Nós, enquanto adolescentes e jovens adultos, éramos felizes. Muito. E sabíamos disso. A escola e tudo o que a ela se reportasse era o centro de nossas vidas. Fomos moldados para praticarmos a ética, o comprometimento com os estudos, a responsabilidade, e, jamais, jamais deixaríamos de fazer os temas, ou não apresentar os trabalhos ou desrespeitar um professor. Fora de cogitação. Era inaceitável. E nossos pais davam sempre a razão aos professores. Contudo, não éramos santos. A despeito da vigilância, fugíamos nos intervalos das aulas. Só pela adrenalina. E vínhamos para casa a pé, rindo e brincando. E era um feito, porque as cadernetas eram carimbadas na entrada e na saída, com os horários. E os namoricos, as “secadas” nas aulas. A cola. Os apelidos secretos aos professores, as peraltices normais de adolescentes. A folia e risadas no ônibus, na ida e volta. Desde o Bairro Cinquentenário até o ponto de cada um. Ah, pois é. Isso foi há tempo. Mas está “cravado” em nossos corações.
“É apenas uma rosa, porém, foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei. Foi a ela que escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa!
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante.”
Nossos professores eram muito conceituados. Muitos deles passaram depois a lecionar na UCS – quando ela foi instalada no início dos anos 70. Porém, tudo começou naquele prédio recém construído, na verdade vários blocos interligados – em perfeitas instalações – salas de especialidades - biblioteca – museu - laboratório – gabinete médico - ginásio de esportes – banda e um auditório... (hoje dá vontade de chorar ao constatar o tamanho descaso crescente ao longo dos anos para com a Educação – esse patrimônio tem sido negligenciado há décadas – é triste constatar como está nos dias atuais. É de chorar, mesmo.) Era uma instituição referencial e modelo para o Estado. Até os dias de hoje é a Escola com maior área construída no Estado.
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. O que quer dizer cativar? É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa “´criar laços´”.
Além do currículo composto pelas disciplinas obrigatórias – eram oferecidas diversas atividades extra-curriculares, e tínhamos liberdade para escolher: artes – música – teatro. Foi ali que despertei uma paixão pelas artes cênicas. Inevitável, pois, a pessoa responsável pelo Teatro era o médico da Escola – o Dr. Darwin Gazzana. Homem carismático, sensível, culto, artista plástico, criou trajes para as rainhas e princesas da Festa da Uva, carros alegóricos... onde ele colocava o seu talento, virava espetáculo. Então...
...foi desse modo que incorporei o doce personagem Pequeno Príncipe – de Antoine de Saint-Exupéry. Quando fui um príncipe. “Le Petit Prince”. O autor narra em primeira pessoa a história: um aviador que cai no deserto e encontra um menino de cabelos dourados e roupa de príncipe. Ao tentar consertar o seu avião, o piloto ouve as incríveis e tocantes histórias do menino.
Ensaiamos exaustivamente. As falas, as pausas, os risos e os choros. A primeira apresentação foi realizada no auditório da Escola. Evento importante – com a presença de professores de escolas de várias cidades do Estado. Foi a culminância de um Seminário Estadual. Auditório espaçoso, ainda sem as filas de cadeiras... imaginemos a amplidão, uma vez que até hoje ainda é o maior auditório da cidade... pois, o gênio criativo do Dr. Gazzana idealizou estrados, mais ou menos como uma escada, cobertos com metros e metros de veludo azul. Os personagens (a raposa – o acendedor de lampiões, a cobra e mais alguns) portavam as vestimentas de forma igual (meia calça e blusa preta com uma túnica branca – apenas o Pequeno Príncipe vestia uma túnica azul). O aviador – o narrador era o próprio Dr. Gazzana, que atuava e conduzia a encenação um pouco afastado do tablado, em uma cadeira alta. O único personagem que se movimentava em cena, subia no estrado, descia, interagia, ria, chorava, era o principezinho. Os demais faziam algum gesto enquanto falavam, mas não saíam do lugar. Enquanto isso, a plateia assistia ao redor do tablado. No final da apresentação, os presentes levantaram-se para nos aplaudir. Fomos aplaudidos de pé!!!
“As pessoas veem estrelas de maneiras diferentes. Para aquelas que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes. Para os sábios, elas são problemas. Para o empresário são ouro. Mas todas essas estrelas se calam. Tu, porém, terás estrelas como ninguém nunca as teve... Quando olhares o céu, à noite, eu estarei habitando uma delas, e eu estarei rindo, então será para ti, como se todas as estrelas rissem! Dessa forma, tu, e somente tu, terás estrelas que sabem rir.
- E quando estiveres consolado (a gente sempre se consola), tu ficarás contente por teres me conhecido. Tu serás sempre meu amigo. Terás vontade de rir comigo. – Será como se eu a ti houvesse dado, em vez de estrelas, milhões e milhões de guizos que sabem rir...”
Ah, o inesquecível e querido Dr. Gazzana, colegas, professores desses anos em que estudei na Escola Normal e antes disso no Cristóvão. Jamais esquecerei do tempo de emoções e descobertas. Da Professora de Português – Anna Maria Rath de Queiroz – a D. Marianinha que gostava de me ouvir interpretando esse personagem: - fala aquele trecho das estrelas... Do Professor Mário Vanin que me chamava de “principezinho”. Do Prof. De Ciências Biológicas José Zugno, ao prometer: – o Pequeno Príncipe merece uma rosa! – Vermelha, Professor. E, na manhã seguinte, ele trouxe uma enorme rosa vermelha – única no mundo – do Horto Municipal. A rosa para mim – um principezinho. Arregalaram-se os olhos das colegas. É.
Essa história do Pequeno Príncipe é atemporal. Conhecida também no mundo inteiro pelos temas universais: amizade, amor, perda da inocência, importância de cuidar do nosso planeta. O autor escreveu outras obras, mas nunca soube do sucesso desse livro, editado em 1943, porque, no dia 31 de julho de 1944, há 81 anos, ele partiu da Córsega para uma missão de reconhecimento. Ele integrava a força aérea francesa e nunca voltou daquela viagem. O avião desapareceu no mar. Seus restos mortais nunca foram encontrados. Ele tinha 44 anos.
Escritor francês Antoine de Saint-Exupéry em seu avião
(Foto: Divulgação)
Quando fui um príncipe! é intimista, revela lembranças pessoais. Porém, tenho a esperança de que meus leitores se identifiquem, de alguma forma, posto que “metade” de Caxias teve a sorte de estudar no IEE Cristóvão de Mendoza e na EN Duque de Caxias.
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora, cronista e bruxa.
Tem dois livros publicados: "Fagulhas" e "Tudo é Momento".
(Foto: Severino Schiavo/Divulgação)