Caxias do Sul 18/04/2024

O que mais sinto falta mesmo, nesses tempos de Covid-19, é...

Para minha aflição, restrições impostas pelo coronavírus aboliram, por enquanto, uma verdadeira instituição nacional
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 20/04/2020 às 22:09:14
Foto: Liliane Giordano

Muito se tem falado a respeito das mudanças comportamentais que estão se estabelecendo na humanidade e que pautarão a construção de um novo mundo a partir da retomada da vida normal após passada a pandemia do coronavírus. Projetam-se alterações profundas nos hábitos de consumo, nas relações profissionais, nas relações interpessoais, nos conceitos de higiene e de prevenção, na ideia de lazer, no convívio familiar, no reescalonamento de valores e prioridades, na capacidade de ensimesmar-se e de conhecer a si mesmo e assim por diante.

Tudo muito real, tudo muito válido e instigante. O que poucos perceberam, imagino, é um aspecto que tem me preocupado, porque, no que tange à minha crônica pessoa, temo que terei de me esforçar para reformatar um hábito que em mim era arraigado e natural. Com a necessidade da imposição das novas regras de distanciamento interpessoal, a fim de evitar o contágio, abolimos momentaneamente os apertos de mão e os abraços enquanto cumprimentos.

Ora, o cumprimento representa o avanço da civilização no sentido da busca perene pelo estabelecimento de relações cordiais entre os seres. O sorriso substitui o rosnar de dentes; o aperto de mão revela a inexistência de armas ameaçadoras sendo portadas; o abraço... bom, o abraço é a expressão da confiança absoluta instituída entre os dois civilizados seres que se abraçam, sejam amigos ou amantes, diplomatas ou negociantes, partintes ou chegantes.

Até aí, tudo bem, são coisas que, quero crer, a gente retoma aos poucos. À medida em que o risco for diminuindo, vamos nos reaproximando dos outros, encurtando também a área de distanciamento corporal de nossos semelhantes, afinal, somos seres gregários, não podemos esquecer disso, e o contato humano e caloroso nos é vital (especialmente entre nós, latino-americanos).

Mas, e como ficam os três beijinhos no rosto a título de cumprimento? Eu sou adepto dos três beijinhos! Não consigo cumprimentar mulheres, moças e moçoilas, senhoras, senhoritas, damas e raparigas, madames, madamas e madamoças, sem apertar a mão e já ir aproximando meu rosto para cumprir o ritual coreografado do balanço do corpo pescoço acima, tascando os três beijinhos. Via de regra, o primeiro deles, carimbo na bochecha direita da interlocutora; o segundo, na bochecha esquerda e, aproveitando o embalo do movimento pendular, puxo de volta o corpo da amiga e encerro as manifestações de entusiasmo concluindo com o terceiro e último beijinho na face de origem da seção oscular: a bochecha da direita, onde tudo começou.

Dou os beijinhos na chegada e na saída. Sempre de leve, na maioria das vezes, sequer empregando a participação dos lábios, apenas dançando o rosto ao redor da tonteada interlocutora, tocando face na face de forma sutil e ligeira, os beijinhos estalados nas entrelinhas do cumprimento. Beijinhos metafóricos, sugeridos, insinuados. Um, dois, três! Cumprimentadas!

Isso, claro, jamais com desconhecidas, ou em situações formais e de trabalho. Daí é o aperto de mão distanciado e simpático, o sorriso no rosto e ponto final. Mas bastou estabelecer intimidade para eu já julgar que os beijinhos, sempre em número de três, podem e devem ser acionados, a fim de estabelecer e/ou reforçar as bases da amistosidade da relação.

Nesses dias de reclusão e de contatos mínimos, preciso conter meus impulsos naturais sempre que, por força da profissão, saio de casa e vejo gente. Meu primeiro ímpeto é, ao encontrar Fulana, Beltrana ou mesmo Sicrana (ah, que saudades de Sicrana!), é ir arremessando o rosto para perto delas, os beiços já engatilhados com os três beijinhos de praxe. Mas sou içado de volta à realidade assim que detecto, nelas, o olhar arregalado e os passos dados para trás, movidas pela prudência; o cotovelo em riste na direção de meu rosto, no afã de desviar meu arroubo beijoral, que pode estar infestado de coronavírus, vai saber.

De repente, meus singelos beijinhos se veem transmudados em uma potencial lava-jato virulenta! Talvez fosse a hora de tentar, enfim, encomendar pelos e-commerce da vida a tal da máquina de dar beijinhos sonhada pelo escritor argentino Mempo Giardinelli, mas daí posso já estar a fazer mais literatura do que convém ao momento.

Que será de minhas técnicas de relacionamento social se, no inescrutável e imprevisível mundo pós-coronavírus de amanhã, os três beijinhos forem proscritos para sempre? Terei de rever meus até então consolidados rituais de civilidade e adotar outras práticas. Precavido e organizado que sou, começo hoje mesmo a treinar, frente ao espelho e sob a máscara (que refreia minha distribuição de beijinhos), novas técnicas de piscadelas de olho à distância, como substitutas viáveis (mesmo que chochas) aos tais beijinhos.

Afinal, quando, por imposição sanitária e de preservação da vida, a humanidade se vê obrigada a colocar também de quarentena os até então inofensivos cumprimentos que requerem aproximação física, é porque pode estar chegando a hora de ressignificar outros atos que vão muito além de prosaicos três beijinhos.

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