Caxias do Sul 23/04/2024

O paradoxo americano

Um convite à reflexão sobre a turbulenta e longa jornada pelo fim da segregação e pela igualdade racial nos Estados Unidos
Produzido por Gustavo Miotti, 10/06/2020 às 10:08:55
Foto: ARQUIVO PESSOAL

“Um homem morre quando recusa a se levantar pelo que é certo, um homem morre quando recusa a se levantar pela justiça. Um homem morre quando recusa a se posicionar pelo que é verdadeiro”. (Martin Luther King Jr.)

Há duas semanas, protestos contra o racismo e a violência policial explodiram pelas ruas de toda a América, algo que não se via há mais de 50 anos. Em contrassenso aos protestos, aproveitadores saquearam diversas lojas e mercados até mesmo em bairros predominantemente negros.

Nas últimas noites, os saques cessaram e as demonstrações pacíficas têm aumentado em número de manifestantes. Impressiona também a mistura de raças e essa nova geração, que julgávamos apolítica, tomando as ruas.

Muito tem se falado na mídia e nas redes sociais sobre o que causou todo esse furor: violência policial, combinada ao confinamento, a depressão econômica e a sensação que os negros têm de desigualdade e impunidade.

Ano passado, tive a oportunidade de passar um dia visitando a última adição ao complexo de museus Smithsonian, administrados pelo governo federal dos Estados Unidos, o Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana, em Washington. Esse museu foi inaugurado em 2016 e revela em ordem cronológica desde a chegada dos primeiros navios com escravos em 1616 até os momentos atuais da luta contra o racismo.

Ao chegar ao fim da visita, tive a sensação de ter estado em uma montanha russa de emoções, vivenciando as raras, mas grandes conquistas e inúmeras e persistentes derrotas da causa da igualdade racial. Apesar de ter lido livros e assistido a diversos filmes sobre a temática do negro nos Estados Unidos, ao final do dia, fiquei chocado com o quanto pouco e raso era meu conhecimento sobre o tema.

Baseados nas recordações do dia da minha visita e tendo como fonte o livro oficial do museu, convido o leitor a uma reflexão histórica difícil, mas necessária, sobre a turbulenta e longa jornada pelo fim da segregação racial e pela igualdade racial nos Estados Unidos.

Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana (Foto do Autor)

ESCRAVIDÃO E A GUERRA CIVIL

Apesar de os Estados Unidos terem sido fundados na premissa de liberdade e igualdade, o tema racial é um perpétuo paradoxo na história da América. A escravidão iniciou quando os Estados Unidos ainda eram uma colônia britânica. Na Declaração de Independência, Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da nação, escreveu: “Todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.

Porém, Thomas Jefferson possuía quase 200 escravos nas suas plantações na Virgínia. Anos depois, Abraham Lincoln, um político que idolatrava os pais fundadores e considerava que a Declaração de Independência enunciava os princípios da alma americana, era eleito com uma agenda moderadamente antiescravista. Porém, antes mesmo de tomar posse, os estados sulinos agrícolas - que eram fortemente dependentes da mão de obra escrava - declararam separação da União para manter a escravidão.

A guerra civil se inicia em 1861 e Lincoln tomou a causa de preservar a união dos Estados Unidos, sabendo que não teria apoio nem do Norte para uma guerra civil, baseado apenas na bandeira antiescravista. Depois de quatro longos anos e mais de 700 mil vidas perdidas, a União conquista a vitória. Apesar de Lincoln ser assassinado por conspiradores sulistas, o país aprova mudanças na Constituição dando liberdade, direitos iguais aos negros.

A ERA DA SEGREGAÇÃO 1877-1968

Apesar da esperança trazida com a vitória e as mudanças constitucionais, a liberdade durou muito pouco. Mais uma vez, o contrassenso reage e surge uma nova forma de opressão pelos estados sulinos: a segregação. Sob o disparate “separados, mas iguais”, se impõe um sistema de discriminação de castas, semelhante ao apartheid da África do Sul, a chamada “leis Jim Crow”, que, mais de que um conjunto de leis, era um modo de vida. Escolas, igrejas, bibliotecas, sistema de transporte, parques públicos e bairros são separados e os negros perdem o direito de voto na maioria dos estados do sul do país.

Políticos e líderes religiosos pró-segregação pregavam que os brancos eram superiores em todas as formas de inteligência, de moralidade e comportamento. Defendiam também que tratar os negros de forma igual os encorajaria à miscigenação e isso iria destruir a América. Em 1967, a suprema corte do país proibiu leis estaduais anticasamento interracial, porém, somente em 1998 a Carolina do Sul mudou sua constituição e o Alabama levou até o ano 2000 para fazer isso em um referendo.

Para se ter uma ideia do estado das coisas, negros que violassem simples normas, por exemplo, tomar água numa fonte para brancos, podiam ser presos, perder o emprego e até mesmo serem linchados. Também surgem organizações baseadas na ideologia da supremacia branca neste período, como a Ku Klux Klan, ativa até hoje, por sinal, atacando políticos do norte ou ativistas políticos negros que lutavam contra a segregação. Essa nova provoca uma forte onda migratória de negros para o norte dos Estados Unidos à procura de uma vida melhor.

Em 1954, surgem de forma organizada diversos movimentos pela luta dos direitos civis dos negros. Alguns com táticas mais radicais e pregando o uso da violência, como o liderado por Malcolm X, e o principal, de forma pacífica, por Martin Luther King Jr (MLK).

Um dos principais legados de MLK é a luta não violenta. Em 1959, em um discurso na Índia diz: “Hoje não temos a escolha entre violência ou não violência, mas sim, não violência ou não existência”. Em 1963, organizou a famosa Marcha a Washington, quando reúne mais de 250 mil pessoas protestando contra a segregação e proferiu um dos discursos mais importantes da história americana: “Eu tenho um sonho. O sonho de que meus quatro pequenos filhos um dia viverão numa nação em que não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter”.

O reconhecimento internacional de MLK era cada vez maior e, em 1964, é agraciado com o Prêmio Nobel da Paz. Naquele ano, o Presidente Lyndon Johnson assina o Ato dos Direitos Civis, que acaba com boa parte da segregação racial no país.

Com apenas 39 anos, no dia 4 de abril de 1968, MLK foi assassinado por um supremacista branco. Pouco mais de um século do assassinato de Lincoln, mais uma vez um herói da causa da liberdade e igualdade é assassinado. A partir do ano 2000, em todos os estados da América, se observa um feriado nacional na terceira segunda-feira do mês de janeiro, em homenagem ao seu nascimento e, como pais, procuramos sempre, neste feriado, conversar com nossos filhos sobre a herança de MLK.

E na última parte, da montanha-russa, os últimos 50 anos da luta pela igualdade racial, houve diversos avanços. Na educação, hoje mais de 90% dos negros terminam o ensino médio, o dobro de 1968.

Também dobrou o número de negros que conseguem terminar uma graduação universitária, apesar de ainda serem um pouco mais que a metade dos brancos. Politicamente, a eleição de Obama, em 2008, criou a esperança de uma nova era pós-racial, que parece ser uma jornada, não um ato. Porém, muito ainda tem de se avançar no gap racial. Negros ainda têm quase três vezes mais chances de viver abaixo da linha da pobreza, e, em média, o patrimônio de uma família branca é mais de dez vezes a de uma família negra.

Na saída do museu, tirei uma foto de uma frase do escritor e ativista James Baldwin, que me marcou muito: “A grande força da história vem do fato de que carregamos ela dentro de nós, somos inconscientemente controlados por ela de muitas maneiras, e a história está presente em tudo que fazemos”.

Estou convicto de que a história nos ensina que devemos seguir em frente, mudar, reconhecer nossos preconceitos e erros e aprender com eles. Sem conhecer a história, nós somos condenados a repetir nosso passado coletivo. Que a memória de George Floyd sirva como um ponto de inflexão nesta longa e paradoxal jornada da igualdade racial americana.

Gustavo Miotti, economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

E-mail: gmiotti@rollins.edu

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