Caxias do Sul 16/05/2024

Não se escreve porque se quer, mas porque se precisa

Escrever é libertador! Não se trata de um processo dolorido; é expiação, tratamento
Produzido por Roberta Debaco Tomé, 25/03/2020 às 09:38:51
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Na minha adolescência, lá na década de 90, comecei a escrever diário. Aliás, quem nunca? Lembro-me de, rotineiramente, colocar naquelas páginas em branco o registro de um dia da minha vida, ora entre risos, ora entre lágrimas – a bipolaridade juvenil é enlouquecedora. E assim, embalada por Nenhum de Nós, Madonna, Roxette, Guns N’Roses, Raimundos –, passeávamos por estilos e artistas incansavelmente –, debruçava-me sobre a doce tarefa de escrever... Processos catárticos tão necessários nessa fase da vida.

Escrevi até um mês depois de casada. Antes, a “ameaça” de ser lida vinha de minha irmã. Por diversas vezes, ela violou meu diário... E ria do que ali estava escrito. Brigas intermináveis... Depois, o marido. Sim! Não havia tanta privacidade assim que garantisse a segurança daqueles diários... Dessa forma, aos poucos, abandonei-os – claro, tendo o cuidado de escondê-los bem – e deixei de escrever...

Seguidamente retorno às lembranças guardadas em páginas. Elas constituem quem fui e quem sou. Dias desses, lendo e recordando, encontrei uma pérola de minha adolescência: a primeira viagem para fora do estado, sem meus pais. Fomos eu e minha irmã e vivemos grandes desafios, como aquele em que, em pleno dia 31/12, aos 16 anos, nos perdemos nas ruas de Fortaleza, tomadas de gente... Precisamos conter o desespero! Mas o final foi feliz! Mesmo sem aparelhos celulares, internet, google maps, demos um jeitinho de voltar ao nosso hotel. Aventuras e memórias...

Tenho a convicção de que, se escrevia, era porque desejava ser lida. Somos seres feitos de linguagem. Temos a necessidade de ouvir e ser ouvido; de escrever e ser lido também. Aquelas páginas esperavam ser decodificadas... tocadas... experimentadas. O desejo por comprar um novo diário ainda é grande, entretanto, encontrei novas formas de externalizar as avalanches que acontecem dentro de mim. Seja lendo bons livros, seja escrevendo textos, procuro sempre deixar a arte conduzir meus dias.

Hoje, vivemos um momento de resguardo domiciliar. Em situações assim, que belo recurso seria escrever um diário: para manter a sanidade; para, em processo de catarse, expiar nossos sentimentos; para também registrar esse fato histórico que todos vivenciamos. O exílio a que estamos sujeitos nos impele a experimentar: ler em família, assistir a bons filmes, colocar o papo em dia, jogar, comer, orar... E por que não escrever?

Escrever é libertador! Não se trata de um processo dolorido; é expiação, tratamento. É clichê dizer que escrever é um ato solitário. Pode até ser, sim, mas, concomitantemente, solidário, pois quem escreve o que mais profundamente anseia é comunicar, comunicar-se. É uma necessidade de dialogar com um alguém que pode, francamente, acolher nossas palavras. Em tempos difíceis, acolhimento, empatia e solidariedade são primordiais. Contemos quem somos, nossos sonhos e anseios, exteriorizemos nossos sentimentos e registremos em páginas escritas o ano de 2020 que apenas se inicia... Todos temos, em mente, um leitor-alvo.

Roberta Debaco Tomé é professora de língua portuguesa e literatura

e-mail:robertadebacotome@gmail.com