Caxias do Sul 05/05/2024

Do banco para a zaga: o desafio em jogo

A relevância de fazer um gol pode ser comparada à de evitar um gol feito?
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 09/12/2022 às 08:20:23
Foto: Liliane Giordano

Em tempos de Copa do Mundo, não existe assunto mais importante a ser abordado por um cronista de veículo de comunicação que não seja o futebol. Em boa parte do planeta (em especial, no Brasil), o tema segue sendo de semelhante relevância mesmo durante os quatro anos de hiato entre uma Copa e outra, bem sabemos, mas fica mais restrito às esferas de ação dos assim chamados cronistas esportivos, retornando os também assim chamados cronistas mundanos às suas tradicionais abordagens das mundanices que regem os demais aspectos da vida humana.

Inspirado nas atenções brilhantes que o mestre escritor José Clemente Pozenato vem dedicando, aqui no portal, ao tema, ao se debruçar sobre aspectos inusitados relativos às bolas (leia AQUI e AQUI), seus formatos, suas nuances, decidi sair do banco e entrar também em campo por uns minutinhos e tecer algumas linhas cronicais a respeito de minha relação (quase inexistente) com a prática do esporte bretão (da qual, aliás, Pozenato revelou ter sido assíduo praticante em idos tempos de bolas de couro com ventil).

Em algumas de minhas sessões de terapia, nas quais vou melhor conhecendo a mim mesmo (para saber quem é esse eu com quem ando), detectei o fato de eu ser, possivelmente, uma das raras pessoas do planeta que jamais vivenciaram a experiência (provavelmente sublime e redentora) de ter feito um gol. Nunca senti o gostinho de balançar as redes, de sair para o abraço, ser ovacionado pela torcida, espiar de canto de olho a desolação do goleiro que cata a pelota no fundo da rede (ou entre as rosetas do mato próximo ao qual se localiza o campinho da várzea).

Nos tempos da escola, óculos fundo-de-garrafa atarraxados na fuça, timidez escaldante jorrando por todos os poros da pele e da alma, sempre integrei (não sei se por opção pessoal ou se por imposição grupal) a turma dos “ruins” (no caso, o termo se referia aos “ruins de bola”), em detrimento da elite dos “bons” (de bola), e minha atuação, especialmente durante as partidas praticadas nas aulas de educação física, restringia-se, via de regra, à tarefa de esquentar o banco dos reservas e torcer. Não que isso me causasse contrariedades e frustrações, afinal, eu mesmo admitia minha condição de perna-de-pau contumaz e não acalentava desejos contidos de estar a suar no gramado ou na quadra atrás da bola, em meio aos "bons”. Eu só era bom de leitura, de escrita, de olhares e de pensares e, isso, para mim, já estava de bom tamanho.

Certa vez, no entanto, lá pelos idos da quinta série, me enfiaram no time. Deve ter faltado alguém (catapora, rubéola, varicela, sarampo eram adversários imobilizantes momentâneos de craques, na época) e acabei convocado a contragosto (do time e de mim mesmo), sendo previdentemente designado à zaga do time que, já de cara, se resignava a entrar em campo com dez jogadores válidos mais o Marcos Fernando.

Alheio ao básico das regras e à lógica da movimentação tática, decidi fincar posição dentro da grande área, à frente do nosso goleiro, independentemente da ocasião em que nosso time atacava ou defendia. Eu não saía dali, afinal, eu era zaga, minha atribuição era cuidar da defesa, e muito me admirava o outro colega zagueiro disparar para o meio do campo quando nossa equipe atacava, me deixando ali, sozinho, a proteger um goleiro bufante (contra mim) e três traves desamparadas. “Não passarão”, devia ser o meu lema inconsciente...

De repente, avistei o Rui, o melhor jogador da turma “dos bons”, capitão e atacante do time adversário, escapar sozinho com a bola nos pés após driblar todo mundo e disparar feito um Emerson Fittipaldi (ídolo em alta na época, afinal, trata-se aqui da década de 1970) rumo ao nosso gol, prestes a invadir a MINHA grande área. Como eu estava dando posição legal, não havia perigo algum de impedimento e o Rui avançava, a bola quicando perigosamente dominada em meio à sua dupla certeira de pés revestidos de Kichutes pretos. Aprumei meus óculos, invoquei meus titubeantes tênis Bamba com listras coloridas e arremeti reto contra o Rui. Não deu outra:

PIMBA!

O choque frontal entre zagueiro e atacante foi estremecedor. Testa contra testa, peito contra peito, queixo contra queixo, braços, pernas e pés embolorados formando momentaneamente um único polvo humano que arriou ao gramado, enquanto a bola picava, desolada, pela linha de fundo. Salvei um gol feito! Como não havia juiz, ganhamos tiro de meta no grito e seguiu o jogo, ainda no zero a zero que se revestia em lucro para nossa equipe. Dolorido, juntei os óculos do gramado, milagrosamente intactos, e me reposicionei dentro da grande área, pronto para encarar os intermináveis minutos restantes de partida.

Estranhamente, o Rui não atacou mais. Nosso goleiro parou de bufar contra a minha presença plantada ali e fiquei ponderando se valeria também dar umas rosnadas dentro dos limites da grande área, a MINHA grande área, sempre que a bola ameaçasse se aproximar, nos pés dos adversários.

Aprendi, décadas depois, refletindo e analisando, que nem sempre somente o ato de marcar o gol é capaz de proporcionar o sabor da vitória. Saber evitar gols adversos pode ser tão relevante quanto...

Marcos Fernando Kirst é jornalista e editor do portal www.silvanatoazza.com.br

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