Caxias do Sul 04/05/2024

Bolas de laboratório

A Jabulani, da Copa de 2010, era tão perfeita que causou traumas nos jogadores de todo o mundo
Produzido por José Clemente Pozenato, 01/12/2022 às 13:12:55
Foto: Marcos Fernando Kirst

Com a Copa do Mundo do Catar já saindo da fase de grupos, não vi nem ouvi notícia ou comentário sobre a bola oficial do certame, a Al Rihla, que significa A Jornada. Tudo bem diferente da Copa de 2010, realizada na África do Sul, em que a bola utilizada foi um dos temas centrais do noticiário, por causa da intensa polêmica provocada pela Jabulani, uma bola que todos devem já ter esquecido.

Depois das reclamações e da grita geral, principalmente dos goleiros, veio um cientista a público assegurar que a Jabulani, alvo dos protestos, era a bola de circunferência mais perfeita jamais produzida para se jogar futebol. Se ela tomava alguns rumos não previstos era exatamente devido à sua perfeição, testada em túnel de vento.

Na prática, porém, a previsão de que essa bola de laboratório seria a mais perfeita da história não se concretizou. Três foram os efeitos negativos provocados pelas suas características técnicas. Um deles atingia os goleiros, outro amargava a vida dos meio-campistas e o terceiro enchia de decepção os atacantes.

O efeito sobre os goleiros foi devastador. Dois deles engoliram “frangaços” jamais vistos em Copas do Mundo. Nas duas situações a bola veio pelo chão, o goleiro jogou-se na grama, certo de que faria a defesa, e a bola escapuliu. Por quê? Porque ela não seguiu a trajetória que faria uma bola que, ao bater no chão, perde parte do seu impulso. Como a bola tecnológica não sofria amassamento ao se chocar com outra superfície, a sua tendência era saltar mais do que a bola rudimentar. Mas o pesadelo dos goleiros não terminava aí. Em todas as bolas vindas pelo alto, a melhor alternativa foi a de espalmar, e não de tentar “segurar a pelota”. Nunca houve tanta bola espalmada pelos goleiros como nessa Copa.

Da mesma forma, nunca houve tantos passes de meio-campistas fugirem pela lateral do gramado. E não porque eles tivessem se tornado pernas-de-pau. O mesmo efeito que não deixava os goleiros preverem o rumo das bombas que deviam defender, não permitia aos “fantasistas” do meio de campo lançar a bola com precisão. Ou seja, a tendência para o erro era maior do que jamais foi. Era enorme a soma de passes errados em cada jogo.

Por fim, havia o calvário dos atacantes, para compensar em parte o dos arqueiros. Muitos chutes de atacantes deixavam incrédulo o próprio chutador. Chutes, que eles quase comemoravam como gol, desapareciam nas nuvens. A soma de todos esses fatores levou a um resultado previsível. Essa foi talvez a Copa com menos média de gols e maior média de frangos.

A perfeição da bola fez com que a mídia exaltasse as imperfeições dos jogadores, para fazer a “desgraça” deles, como disse um jogador nigeriano. Essa opinião dos jogadores foi defendida pelo Dunga, então técnico da Seleção Brasileira, com seu estilo ríspido de costume: “quem nunca pisou num gramado e nunca chutou uma bola, só sabe falar”.

A alta tecnologia vem acompanhada às vezes de alguma lacuna a que não foi dada atenção. No caso da bola de circunferência perfeita e peso perfeito, que funciona perfeitamente num túnel de vento, o detalhe desprezado foi o de que no futebol a bola rola num gramado, que nunca é uma superfície perfeita. Bom jogador é o que sabe qual é o lado certo da bola para passar, para chutar e para encaixar. Como a Jabulani estava certa de todos os lados, ela só provocava erros.

No final da história, a própria Adidas, fornecedora oficial das bolas da FIFA, reconheceu que havia sido perfeita demais. E na Copa do Mundo seguinte, realizada no Brasil em 2014, lançou a bola Brazuca, mais próxima do formato tradicional, com fibras expostas para amortecer o choque no gramado e o percurso pelo ar. Nada como a experiência concreta para comprovar ou modificar a teoria...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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