Caxias do Sul 26/04/2024

Covid-19 faz mais uma vítima: a globalização

Nunca devemos esquecer a regra de ouro nas relações interpessoais e internacionais, que é “trate as outras pessoas da maneira que você gostaria de ser tratado”.
Produzido por Gustavo Miotti, 22/04/2020 às 09:16:09
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Antes mesmo da chegada da Covid-19, diversos intelectuais e pesquisadores da área econômica e social questionavam se o mundo estaria passando por um processo de desglobalização. Agora as manchetes dos principais jornais e revistas de economia e política dão como certo um novo mundo, onde cada país irá buscar uma maior independência das conexões econômicas, políticas e sociais que hoje vivemos.

Em 1944, o estabelecimento do Acordo de Bretton Woods forneceu a estrutura para um nível de integração sem precedentes entre a maior parte dos países do mundo. O Acordo também declarou que a estabilidade e a prosperidade devem sempre estar conectadas, para prevenir uma outra tragédia como a Segunda Guerra Mundial. O período subsequente de globalização contribuiu para um considerável desenvolvimento da economia mundial e dos indicadores sociais, e o processo de integração econômica acelerou-se posteriormente com a queda do Muro de Berlim em 1989.

Muitos dos indicadores que fazem parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas mostram que o mundo tem melhorado em termos de qualidade de vida e desenvolvimento econômico. A expectativa média de vida, por exemplo, aumentou de 52 anos em 1960 para mais de 72 anos em 2016. Ao redor do mundo, a taxa de pobreza extrema, que se refere a uma renda abaixo de $1,90 por dia, foi reduzida de 42% da população mundial em 1981 para 10% em 2015 (Banco Mundial).

Mesmo que tenha havido fases prévias de mais ou menos globalização ao longo da história, parecia que desta vez seria diferente e estava a ser percebido por muitos como um processo irreversível de integração e interação de ideias, pessoas (imigração e turismo principalmente), companhias privadas, instituições e governos, reforçado pela evolução das tecnologias de comunicação e transporte.

Mesmo se for considerado não intencional e não causado exclusivamente por ela, a globalização produziu algumas consequências negativas importantes que fortaleceram a reação a ela. Nos últimos anos, houve uma mudança radical na atitude dos indivíduos no que diz respeito à globalização, especialmente depois da Grande Recessão que começou no ano de 2007. Isso parece ter alimentado uma hostilidade sem precedentes contra a integração econômica, política e social pelos dois principais patrocinadores do processo, Estados Unidos e Reino Unido, além de outras nações. Esse fenômeno foi chamado de desglobalização, definido como o processo de enfraquecimento da integração e interdependência entre indivíduos, organizações e países.

Os principais efeitos colaterais produzidos e até acelerados pela globalização levaram a um grande aumento na desigualdade das economias mais importantes do mundo. Por exemplo, nos Estados Unidos, a proporção da renda nos estratos superiores aumentou de 7,7% em 1973 para 22% em 2015, mas a proporção dos estratos inferiores caiu de 21% em 1980 para 13% em 2015 do PIB. Além disto, houve um aumento na desigualdade geográfica dentro dos Estados Unidos, porque há áreas que sofreram com a globalização, como o Rust Belt do centro-oeste, enquanto outras, como o Silicon Valley, se beneficiaram dela.

Embora as críticas à globalização tenham sido apresentadas antes, a Grande Recessão mudou a perspectiva e acrescentou poder à ascensão do populismo. A Covid-19 vai dar uma força ainda mais desproporcional à desglobalizacão.

Os dois principais patrocinadores da globalização estão produzindo políticas para uma quebra na ordem da integração mundial: o Reino Unido, com o longo processo do Brexit, e os Estados Unidos, engajados em guerras comerciais com a China e com querelas imigratórias com o México e Canadá.

A mudança institucional tem sido mais imprevisível desde o início da Grande Recessão, e temos visto o surgimento de movimentos populistas de direita e de esquerda, além dos Estados Unidos e do Reino Unido, em lugares como Hungria, Polônia e Espanha com ceticismo em relação à globalização na sua mensagem central.

A fim de resolver esse profundo caos social e econômico desencadeado pela Covid-19, o mundo precisa unir-se, respaldar a governança criada em 1944 e transformar a globalização 2.0 em uma nova versão mais igualitária e consistente em relação à sustentabilidade.

Nunca devemos esquecer a regra de ouro nas relações interpessoais e internacionais, que é “trate as outras pessoas da maneira que você gostaria de ser tratado”. A história nos ensinou que, no passado, quando os países decidiram não seguir essa máxima, aconteceram os piores capítulos para nossa civilização. A Covid-19 chegou para produzir uma terrível aceleração nas condições propícias para um novo desastre.

Gustavo Miotti, economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

e-mail: gmiotti@rollins.edu