Caxias do Sul 26/04/2024

Com água na boca

Ao prazer de cozinhar acrescento o de arrancar suspiros
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 01/01/2021 às 15:48:57
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Todos temos nossas paixões. Quem me conhece, sabe que eu gosto de ler e de cozinhar. Leituras e boa cozinha provocam emoções, alimentam nosso corpo e nossa alma. E, onde há emoção, há poesia. Além do mais, tenho um lado romântico, do qual não consigo me libertar.

Ah, o amor, tem de estar presente em tudo, inclusive no meu fazer culinário, o qual me fascina, me atrai pelo carinho de fazer bem feitinho, de cuidar das pequenas e efêmeras obras de arte que realizo para quem eu gosto. Manifesto amor na beira do fogão, no laço do avental, na ponta da faca para cortar, picar, fatiar... no bater da louça... Alimento os amores, nutro o meu espírito.

Nasci em uma família cujos avós vieram da Itália e aqui aportaram em busca da cocagna – a troca de uma situação de fome na Europa pela promessa de um futuro de fartura aqui. Minha herança culinária está ligada à minha infância, ao cheiro da cozinha da avó materna - a Mãe Marieta, assim a chamávamos, às comidas da D. Olga, nossa mãe, e as das tias, dos almoços de domingo em família e a tantos outros encontros que a vida me proporcionou.

Quando criança, o viver cotidiano rondava o fogão a lenha na casa de meus pais. Muito cedo, enquanto ainda dormíamos, o pai Antônio acendia o fogo e fazia o café da manhã. Desde que eu me lembre de ser gente, ele o levou para a mãe, na cama, antes de ela levantar-se.

Nesse fogão sempre havia uma chaleira com água e panelas. Ali os ingredientes, os produtos, como magia, eram transformados em saborosos pratos: polenta brustolada, sopa de agnolini, tortéi, risoto, milhos nas brasas, bifes na chapa (hummm) e pinhões tostados, depois batidos com um martelo para soltar a casca. Que delícia! Ah, e as batatas-doce assadas. As comidas eram levadas à mesa, e todos nós fazíamos as refeições juntos, em comunhão perfeita, comer e celebrar.

Havia noites em que nossa avó aparecia, de surpresa, envolta pelo casaco de peles, longo, quase até os pés (talvez por ela ter pequena estatura) e, dos bolsos internos, retirava, para nosso deleite, um verdadeiro banquete: raditti cotti, costelinhas de porco e polenta feita por ela no tacho, cortada em fatias com um barbante. Casaco mágico. Tudo isso era colocado na chapa do fogão. Sssssssssssss. As polentinhas iam dourando ao suco das costelinhas. Eu e meus dois irmãos menores nos lambuzávamos de felicidade.

No decorrer da vida amealhei sutilezas entre comidas, temperos, panelas e pessoas. Possuo um arsenal de memórias relacionadas com essa necessidade básica – o alimento – porque quando degustamos um prato, exercitamos um repertório de sentidos.

Comemos com a boca, com os olhos, com o olfato, com a audição, com a alma até. Pois, um simples purê pode remeter a lembranças de nossa infância. O churrasco que o pai fazia, salpicando a carne com um maço de temperos amarrados, embebidos em uma espécie de vinha d’alhos (os churrasqueiros de hoje arrancariam os cabelos, ehe), mas garanto, tinha um cheirinho, saboroso e macio.

A maionese que a mãe fazia mexida a mão, com as gemas douradas dos ovos de nossas galinhas que eram livres, o carreteiro do meu irmão Sérgio (com charque verdadeiro). As tortas de minhas irmãs Loiva e Nena, feitas para as festas – a de massa folhada, as “folhas” feitas uma a uma, a de aveia e a de biscoito com chocolate e óleo de coco, essa ficava no freezer, cada pedacinho um bombom. Tudo era feito em casa. O livro de receitas da D. Benta era umas das leituras preferidas lá em casa.

O tempo passou, ou eu passei por ele, entre os aromas e sabores e as palavras. “Confesso que vivi” muitas experiências. A omelete que eu fazia quando chegava doida de fome da faculdade – ovo/queijo/cebola. O lombinho de porco com banana, na volta da lua-de-mel, que o marido odiou. As papinhas dos bebês. Os jantares para os casais amigos, alguns cursos na Escola Sal a Gosto, degustações de vinhos. E muitos erros e acertos, porque a cozinha é uma alquimia, um ateliê. Em 2011, vivi intensas aventuras gastronômicas... em Paris!! (se os leitores considerarem simpática essa ideia... quem sabe eu conto algum dia?)

Quanto ao momento atual, diz-se que a gastronomia está na moda. (Será que em alguma época saiu de moda?) Há movimentos gastronômicos vanguardistas, a procura pelos cursos nessa área aumentou incrivelmente, a internet oferece muito além do que se possa imaginar em vídeos, receitas, entrevistas com chefs, programas, reality shows, e muito mais. Afinal, a comida é fundamental, assim como o ar que respiramos.

O prazer de estar só, cozinhando... uma taça de vinho nesse estar só, é muito sensual para mim. Como desenvolvo essa arte, a cada dia e na prática, aprendo e deixo que minha sensibilidade aflore.

Respeito as dádivas da natureza. Evito ao máximo o desperdício de alimentos. Não jogo fora, reaproveito as sobras e crio pratos melhores ainda. Os encantamentos afloram ao constatar a poesia perfumada, tátil, auditiva e visual advinda da perfeição dos vegetais e das frutas, das suas cores, texturas... as fatiazinhas do alho poró, o separar os aneizinhos por entre os dedos, os tomatinhos, os aromas dos temperos, da salsinha, da sálvia, do manjericão, alecrim, hortelã... os diversos tipos de cogumelos, o alho fritando na manteiga, as texturas dos ingredientes... as minhas reticências no texto, porque há tanto mais... e os parênteses... para explicar... e um bom caldo e um bom molho fazem milagres.

... os casamentos perfeitos, queijo com goiabada, Jack Daniels com brie, vinho com queijos, queijos com frutas, tomates com queijos derretidos, uísque com brigadeiro – e aquele molho de carne caprichado para cobrir o macarrão, onde se acrescenta, antes de servir, muitas folhas de espinafre (esse era o segredo da tia Lyna) - o bolinho de arroz com guacamole, isso mesmo, receita do chef Alex Atala, (abacate/limão/sal/coentro fresco) – abre o bolinho, coloca guacamole, pedaçuda, sem esmagar muito o abacate, e morde... abocanha, nhammmmm).

Necessito estar muito concentrada e em silêncio quando cozinho, assim entrego o meu melhor, porque as pessoas que amo irão degustar a minha arte. Ao prazer de cozinhar acrescento o de arrancar suspiros. Vezenquando. Desobedeço a certas receitas, obviamente há algumas regras a seguir, crio ao meu modo, os ingredientes determinam e devem ser aproveitados em seu melhor momento. Sigo minha intuição e confio no fogo, deixo que ele faça a parte dele. Faço descobertas neste poetar.

O presente mais adorável que se pode dar a alguém é algum tempo de sua vida. Tempo, algo precioso, um luxo. O tempo utilizado para criar uma pequena obra efêmera, mas que é um processo complexo, porque inicia na escolha dos ingredientes até o suporte para servir.

Digo “eu te amo” também desta forma, romântica e assumida, meio brega nos dias de hoje, meio fora do contexto, por conta do romantismo sentimental. Assim, uso parte do meu tempo, em algumas épocas do ano, para cozinhar e presentear os meus afetos com: “Caponata de berinjelas.” “Tomates secos.” “Cebolinhas caramelizadas.” “Tomatinhos confitados.” Tenho ideias para mais, adianto uma: olha, estou planejando fazer como a Bia, minha manicure, que me ensinou – ao assar uma carne, coloca também no forno, uma cumbuquinha com alhos inteiros, sem casca, cobertos com azeite de oliva, mmmmmmmmm, depois esmaga-os sobre a carne assada. Divino.

A caponata de berinjelas: sabor irresistível, com o tempero do amor (Foto: Marília Frosi Galvão)

Entre leituras e boa culinária, entre o poder dos sabores e das palavras, o livro “À mesa com Proust” celebra esses dois prazeres. Pela autoria de Anne Borrel, Jean Bernard Naudin e Alain Senderens, acompanhamos uma primorosa seleção de textos de “Em busca do tempo perdido” de Marcel Proust, o leitor é conduzido pelos paladares da infância do autor, às refeições em família e às delícias gastronômicas do final do século XIX e início do século XX. Apresenta 60 receitas.

“Minha vida na França” – de Júlia Child, americana que morou na França, em meados do século passado, teve aulas no Instituto Le Cordon Bleu, descobriu sua vocação culinária, tornou-se apresentadora de sucesso com receitas sofisticadas e escritora reveladora de saborosas memórias.

“A cozinha das escritoras” – de Stefania Aphel Barzini, Sabores, memórias e receitas de 10 grandes autoras (Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Elsa Morante, Agatha Christhie...) prova que cozinhar – comer – muito tem a ver com a arte da escrita, cozinheira e escritora compartilham do poder da criação.

Biblioteca une letras saborosas com receitas de dar água nos olhos (Foto: Marília Frosi Galvão)

Todos temos nossas paixões.

Quem me conhece sabe que gosto de ler e de cozinhar.

Leitura e boa cozinha provocam emoções. Onde há emoção há poesia.

Então,

Ficou com água na boca?

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista

mail galvao.marilia@hotmail.com

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