Caxias do Sul 04/05/2024

A permanência da GAUCHESCA

A cultura do modo de ser conhecido como “gaúcho” alimenta o mito ao longo das eras
Produzido por José Clemente Pozenato, 21/09/2023 às 13:40:20
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”
Foto: Marcos Fernando Kirst

Em meio aos festejos capitaneados pela data de 20 de setembro, trago à tona algumas das ideias que escrevi, décadas atrás, sobre a “permanência da Gauchesca”.

A gauchesca, sinônimo de cultura do gaúcho, tem início em meados do século dezenove, quando as correntes migratórias de origem europeia, que iriam constituir as zonas coloniais, apenas começavam. A única cultura existente era a do gaúcho da campanha, o forjador da província. Mesmo a cultura urbana era então incipiente.

O habitante da cidade vivia na época uma situação híbrida, como observa Carlos Dante de Moraes (1909-1982), consagrado historiógrafo e ensaísta santa-mariense, referindo-se aos idos de 1925, em ensaio publicado em 1954:

Constituía fato comum a troca, em dado momento, da bengala empunhada por mão em que brilhava o anel de formatura, e do traje elegante da moda, pela bombacha, o pala e a espada.

Essa cultura trazia o estigma poderoso de vir das origens, com a chancela dos heróis civilizadores, dos criadores da província. A vida rude, seja do labor guerreiro, seja do cotidiano, o risco e a vigilância contínuos, mais os deslocamentos que ampliavam horizontes, tudo isso gerou um ethos que se tornaria coletivo e que, antes de ingressar na literatura, se fez patrimônio popular. Carlos Dante de Moraes aponta os escritores românticos como criadores do tipo gaúcho, depois de alguma indecisão, provocada pelo romance indianista de José de Alencar. Aponta como sinal dessa indecisão o fato de o escritor Apolinário Porto Alegre (1844-1904) evitar o termo gaúcho, que identificaria como um personagem “dúbio e malsinado”, em seu romance O Vaqueano, de 1872.

No entanto, o termo seria dúbio e malsinado talvez apenas para a classe urbana e culta. A poesia popular, de que dão prova os cancioneiros, já havia criado um mito e projetado seu ethos, feito de liberdade insofrida, de gosto pelo viver difícil, de exaltação da coragem e de afirmação da individualidade. A poesia e a ficção culta reproduziram depois a visão lírica e a gesta épica, contidas nas quadras e nos causos de galpão.

O fato de haver se transformado em mito cultural é que garante a permanência da gauchesca. As mudanças culturais que se processam a partir, principalmente, da década de 1920, dando origem à criação de um novo tipo social rio-grandense, de trajes urbanos e andando a pé, não afetam a gauchesca. É verdade que na literatura ela se transforma, e passa conviver com outras manifestações de cunho universalizado. Como escreveu Ivan Pedro de Martins no romance Fronteira Agreste (1954), parecendo dar a clarinada fúnebre de um ciclo que se extingue: “O gaúcho já não é o homem montado”.

Apesar de tudo, o “gauchismo” permanece como um elemento da cultura rio-grandense. Talvez a antropologia, pela observação de certos comportamentos, possa dizer se, e em que medida, os grupos provindos de migrações tardias entroncaram nesse espírito comum, assumindo como próprio o modo de ser gaúcho. Essa tendência a incorporar o mito gauchesco seria reforçada com a criação dos Centros de Tradições Gaúchas em todas as regiões de imigração, difundindo a bombacha, o churrasco, o fandango e o bom chimarrão...

Devo dizer também que foi em reação a esse comportamento monocêntrico que tomei a decisão de pôr outra cultura gaúcha em cena nos meus romances: a criada por imigrantes que, depois de ter passado por uma Babilônia político-cultural, se firmou como uma contribuição diversificada para o patrimônio cultural gaúcho. E brasileiro.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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