Caxias do Sul 05/12/2024

O Mestre que observava

Como aluna do PROFESSOR POZENATO, há lembranças de momentos que me fazem sorrir – num misto de saudade e de gratidão
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 28/11/2024 às 09:16:09
O Mestre que observava
A eterna pupila prestigiando lançamento de obra do eterno Mestre
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Por MARILIA FROSI GALVÃO

Era uma garota. Eu. Que amava os Beatles e os Rollings Stones. Aluna do Curso de Letras da UCS. Anos 1970. Internet zero. Eu não teria como imaginar o futuro. E nem que o deslumbramento pelas palavras duraria por toda minha vida. E que aquele determinado professor – admirado em especial – tornar-se-ia alguém próximo – e que ainda seríamos colegas-colaboradores deste Portal de notícias. Não. Nem por sonhos, nem por um excesso de imaginação, ou por algum delírio muito louco. Nada disso.

Em uma das salas do Bloco A – da Universidade, entrava pontualmente às 14h o Professor Pozenato. Jovem, esbelto, bigode grande, vestido com terno e gravata à moda da época. Sentava em uma banqueta, próximo aos alunos. Um livro em uma mão. Um cigarro na outra. Fala mansa. Raciocínios. Explicações. Lia partes do livro. Por vezes parecia pensar em voz alta, quer dizer, falava baixinho o tempo todo, como um grande pensador. Sábio.

Pois, eu sentava na primeira fila. Ouvia avidamente o Mestre e anotava tudo o que pudesse. E o fazia. É bem verdade que, em seu quase murmurar – ao tragar o cigarro... ele não pausava para expirar a fumaça, continuava falando... e a fumaça saía pelas narinas e pela boca, junto às palavras. Me impressionava. Achava essa visão instigante, charmosa e meio mágica. Quanto a mim, suspendia a respiração, até que... afff.

Por certo, eu era imatura em muitos aspectos. Todavia, eu gostava muito de estudar. Ao chegar em casa após as aulas, passava a limpo as anotações das aulas do Prof. Pozenato. Com capricho. Assim, revisitava os apontamentos e ouvia em minha mente o tom da voz do Professor em cada palavra proferida e nas ênfases.

Tantas foram as descobertas. Até hoje, passadas décadas, aprendo. Posto que é da natureza do ser humano ter essa capacidade. Do Curso de Letras – dentre as ditas e incontáveis descobertas – cito apenas uma – fulminante: Machado de Assis. Pelas aulas do Prof. Pozenato – nos estudos da obra machadiana, pude vislumbrar alguns aspectos que, mais tarde, ao longo dos anos e das leituras, eu iria aprofundar. Não se usava a palavra militância. Machado era um militante – mas em palavras – em histórias – em contos - em romances... em fino humor. Mestre na arte da ironia – denunciava racismo e escravidão. Bem, por estas leituras, perdi um pouco da ingenuidade em relação ao olhar o mundo, passei a observar os mundos nas obras literárias, e constato que continua quase tudo mais ou menos do mesmo.

Ainda desse tempo de estudante de Letras - como aluna do Prof. Pozenato, há lembranças de momentos que me fazem sorrir – num misto de saudade e de gratidão. Ahhh!!! Daquela vez em que fiz um trabalho meio estranho sobre a existência de conexões entre arquitetura e literatura, ele escreveu no final: “A intenção foi boa, mas o resultado nem tanto”. Frase que uso até hoje. Ahhhh!!!! E tem aquela outra. A do dia em que houve um suspense. Na prova oral. Sobre Machado de Assis. Após uma conversa inicial e questionada por algo mais específico sobre o escritor em questão... O Senhor é como o Machado de Assis! ??? Por quê??? Ah, Professor, penso que Machado não era só inteligente. Ele era um escritor que criticava a sociedade e os costumes daquela época, de uma forma extremamente irônica, por meio de histórias e personagens muito interessantes. Denunciou em forma de “arte em palavras” a hipocrisia e os falsos valores – vale-se pelo que se tem e não pelo que se é... Era contido e comedido. Por isso, era um observador. Ficava como que nos bastidores, escondido dos olhares, e dali observava tudo. Como o Senhor, que está ali do outro lado da mesa a observar esta aluna em relação ao que ela assimilou sobre a obra machadiana. E me observa com um meio sorriso que me parece meio irônico, indecifrável... O Senhor me deixa em dúvida... então... “Poze” me deu nota máxima!!!

Em tempo, ainda gosto dos Beatles e dos Rollings Stones.

Obrigada, querido Mestre, por me ensinar o amor pela literatura e pelo saber. Obrigada pelo seu legado literário. Riquíssimo. Pelo Quatrilho. Por me contar que existe a sorte do escritor – quando ele precisa de algo importante para dizer o que precisa, o Universo oferece esse algo. Obrigada pelas oficinas literárias. Por dizer que é difícil, mas necessário escrever simples e que, se um detalhe, como por exemplo, uma espingarda aparece no começo do texto, fatalmente ela terá de reaparecer... Obrigada pelas palestras. Pelos encontros nas Órbitas Literárias. Pelas Feiras do Livro...

Obrigada por tudo...

Obrigada por tanto...

Marilia Frosi Galvão é escritora, professora e cronista colaboradora deste Portal.