Caxias do Sul 23/04/2024

As realidades de Natália, a xilofonista da Avenida Júlio

Ela constrói a vida entretendo musicalmente os pedestres que se aproximam da sua órbita de calçada
Produzido por Marcos Mantovani, 20/03/2020 às 17:53:28
As realidades de Natália, a xilofonista da Avenida Júlio
Atenta e informada, Natália adotou em definitivo o uso da máscara nesses tempos de coronavírus
Foto: MARCOS MANTOVANI

Por: Marcos Mantovani

Aquela famosa canção dos anos 60 diz: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Natália não espera acontecer. E faz doze horas por dia em Caxias do Sul, sempre na esquina da Garibaldi com a Av. Júlio. Seu xilofone tem onze teclas cinzas, pequenas, cujas notas musicais são despertadas pelo toque de uma baqueta. Tudo muito rápido e rítmico. Tudo muito a céu aberto.

Aos pés de Natália, fica posicionado o pote que recebe as moedas e as cédulas — pote mágico, porque é dali que sai todo o sustento dela. Aos 30 anos, Natália constrói a vida entretendo musicalmente os pedestres que se aproximam da sua órbita de calçada. “Eu toco fábulas, poemas, histórias.” E ajuda a culturalizar a avenida de uma cidade que nos últimos dois anos não deu tanta bola à cultura.

ÁGUA, DESLOCAMENTOS

Natália nasceu em Belém, Pará. A convivência com os pais foi uma história abreviada cujos parágrafos Natália prefere suprimir. O que ela não suprime é o fato de que foi morar nos fundos de um salão de beleza, atenta aos movimentos que aconteciam ao redor. Segundo a narrativa de Natália, sua meninice está marcada por uma atmosfera de extremo valor à pureza, à simbologia da água. “Me lembro dos poços naturais de todo o norte, eu amo água.”

Água combina com fluidez, que combina com deslocamento. Natália já se deslocou bastante pelo Brasil. Na Bahia, encontrou aconchego nas lonas de um circo que era tocado por um senhor francês de nome Paolo. “Eu praticava tecido com uma artista espanhola e aprendi a me apresentar naquela corda suspensa, sabe?” Também foi na Bahia que Natália se deparou com a água dos seus sonhos, na Lapa Doce, Chapada Diamantina. “Eu estava bem selvagem lá”, diz e mostra um sorriso ilimitado.

FILHO, DISTÂNCIA

Ártico Real Cross Nabucodonosor Portilho é o nome do filho de Natália, menino de 4 anos. Essa inspiração nominal respeita uma lógica bem misturada. Ártico vem da questão da limpidez da água, do brilho, da transparência. Real se deve ao fascínio que a mãe sente por tudo o que tem a ver com realeza. Cross foi um pintor pontilhista francês, cuja arte inspira Natália. Nabucodonosor é homenagem ao rei babilônico, à dinastia do poder. E Portilho é o sobrenome original de Natália.

Não faz muito que ela perdeu a guarda do pequeno Ártico — assunto sobre o qual Natália se alonga de modo vulnerável. Por isso, aqui aparece apenas uma espécie de índice da história. 1) Juiz de Caxias interpreta que o estilo de vida da mãe não é o ideal para a criança. 2) Menino é conduzido para um abrigo. 3) A mãe se organiza para reconquistar a guarda do filho. 4) A angústia silenciosa que só é suavizada pelo som do xilofone.

SOTAQUES, AMORES ESTRANGEIROS

Natália tem um sotaque misturado, de difícil classificação. Sotaque que não é percebido nem como nortista nem como sulista. Isso se deve ao fato de Natália já ter morado em vários lugares (PA, BA, SC, RS, Argentina) e também se relacionado com dois estrangeiros. O namorado francês não marcou tanto assim a vida dela. Mas o sueco Farfar sim. “Ele tinha um cabelo dread que vinha até aqui.” Mesmo hoje, após anos do término, após já não existirem mais notícias dele, Natália diz ainda sentir um ciúme irracional de Farfar. “Não sei te explicar o motivo, é meu jeito. Acho que seria preciso um domador de cabra pra domar uma capricorniana que nem eu.”

UNIVERSIDADE, PERSONAGEM

O estudo auxiliou Natália na sua modelagem interna, na sua sensibilidade. “Pra mim, até um sofrimento brutal pode ser visto como arte.” Durante pouco mais de um ano, ela cursou uma faculdade de Teatro em Belém, na UFPA. Trancou o curso porque achou que era o momento de turistar entre a Bolívia e o Peru, no lago Titicaca. A consequência é que essas experiências itinerantes, junto com a graduação de Teatro, delinearam em Natália um espírito livre e artístico.

Um espírito que em determinado momento precisou criar uma categoria específica de escudo, ou seja, uma personagem. “Enquanto eu toco xilofone na rua, quem as pessoas enxergam é minha personagem”, diz e mantém o semblante sério. O eco dessa fala revela uma autoconsciência madura, algo que resguarda Natália, que a protege contra certas angústias da realidade. Até porque a personagem (diferente da mãe sem a guarda do filho pequeno) está sempre forte para olhar os vilões nos olhos.

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