Por Marcos Mantovani
Não é figura de linguagem: André Ribeiro da Luz, 55, tem quatro mãos. Suas mãos extras são amadeiradas e foram construídas por ele mesmo, “já estão na sexta geração”. As gerações anteriores das mãos extras de André eram mais pesadas, mais ásperas, características que o estimularam, feito um geneticista, a sofisticar o próprio corpo. A única limitação dessas mãos complementares é que elas possuem apenas um dedo, o indicador — mas nada que atrapalhe a sua função, que é ficar apontando para a Periquito da Sorte Loterias.
A Periquito da Sorte foi sortuda em achar alguém como André, cujas tarefas na lotérica transitam por no mínimo cinco frentes: propagandista, recepcionista, segurança, designer e organizador de filas. Ele é o faz-quase-tudo, o joker do baralho, uma polivalência que André sempre exerce com desvelo e cortesia, com proatividade e delicadeza, traços de caráter que ele teve o cuidado de transmitir também aos quatro filhos — Lucas, Gabriel, Narayna e Miguel.
A CASA, A VOZ
André é caxiense e nasceu em casa, no número 65 da Borges. Nascer em casa deve ter feito com que ele se sentisse à vontade consigo desde o primeiro minuto: a familiaridade, o pão caseiro, os rostos domésticos. O inusitado é que o nascimento caiu em 31 de março de 65, exatamente um ano após o golpe militar no Brasil, como se o menino André tivesse sido enviado para mostrar que a truculência precisava ceder espaço à gentileza.
André é gentil. E possui uma fala cadenciada. Sua alocução tem a feitiçaria de atrair os pedestres da Av. Júlio e da galeria JC. “Loterias é logo ali, logo ali, logo ali”, ele entoa, sem exagerar na entoação. A parte divertida é que, segundo o testemunho e a piscada de olho de André, as Lojas Colombo “pegaram de empréstimo” essa marchinha do “logo ali”. Marchinha que foi aproveitada também pelo carnaval de Caxias, pois de repente surgiu aqui uma festa chamada “O carnaval é logo ali”. Ou seja, André é compositor, ainda que lhe falte copyright ©.
O MONGE
Existe um ponto-chave no passado de André. Em 1983, o ano da guinada, ele sentiu a necessidade de virar monge. É fácil visualizá-lo... Os mantras, a fumaça espiralada dos incensos, a raspagem do cabelo, a indumentária açafranada. É fácil visualizar o seu sorriso ao mesmo tempo alegre e triste: alegre devido aos encontros semanais com a iluminação, triste devido à consciência do mal onipresente que se alastrava pelo mundo.
Época em que ele escutou uma conversa reveladora-meio-profética entre um padre e o Mestre Prabhupada, o que fez com que André não perdesse tempo e fundasse para si uma aura de tranquilidade, de comunhão com o humanismo. A juventude e as emoções dele no trabalho íntimo da garimpagem de referências, garimpagem de novos pontos de vista — buscas que todos nós (comunistas ou fascistas, Sargentos Garcia ou Zorros) jamais cessaremos de fazer.
A CAPITAL, O INTERIOR
André se experimentou em Porto Alegre por vinte anos. Foi vendedor na Rua da Praia e depois abriu um restaurante indiano no Bom Fim, Rua Tomaz Flores. Fez ainda bicos de figurante em pelo menos duas ocasiões. 1) Na metade dos anos 80, dá para vê-lo numa das gravações de fim de ano da Rede Globo, as mãos dele no gingado da música. 2) É possível também avistar André num dos videoclipes da banda Graforréia Xilarmônica, ele aparece de relance atrás de um anão, “eu pesava 108 kg naqueles dias”.
De volta a Caxias, logo em frente ao seu atual local profissional, André vendeu incensos e itens xamânicos durante muito tempo. “O problema foi que no governo Guerra a gente não conseguiu mais vender ali, por causa duma reforma no prédio.” Eis então que a Periquito da Sorte Loterias teve a presença de espírito de contratar André, que há três anos está ali com as suas quatro mãos, o trabalhador com o maior número de sorrisos por minuto da Av. Júlio.
O BHAGAVAD-GITA, A LUZ
O texto Bhagavad-Gita tem a ver com os hindus, com Krishna, com a sublime canção. E tem a ver com André, que busca nessa leitura o aprofundamento das sensibilidades, o avanço irreversível do eu. Um eu que talvez a Periquito da Sorte Loterias não tenha a sorte de conhecer por completo. Um eu que, ao longo das horas vagas e das eventuais insônias, permanece focado na autoinstrução sobre a sociedade, sobre o homem, sobre a história do mundo. Um eu que, além das quatro mãos trabalhadoras, possui no próprio nome quatro pontos intensos de luminosidade: André Ribeiro da Luz.
e-mail: marcos-mantovani@hotmail.com
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