Caxias do Sul 07/05/2024

Um país impossível

O destino final do trem era a Iugoslávia, localizada no cruzamento do Ocidente com o Oriente
Produzido por Gustavo Miotti, 22/05/2021 às 09:34:57
Foto: ARQUIVO PESSOAL

“A história não se repete, mas rima” (Mark Twain)

No início da última década do século XX, o velho continente vivia um boom de otimismo. Afinal, o pesadelo da divisão promovida pela Guerra Fria tinha finalmente chegado ao fim com o determinante triunfo da democracia e a queda abrupta do Muro de Berlim.

Enfim, as últimas cicatrizes visíveis da II Grande Guerra tiveram o seu desejado fim. O projeto da comunidade europeia se acelerava com novos membros se juntando a ela e o sonho de uma moeda única que fortaleceria ainda mais os laços entre as nações do continente e evitaria futuras tragédias como as grandes guerras que assolaram o continente na primeira metade daquele século.

Foi nessa Europa otimista e confiante que finalmente coloquei meu pé no continente no gélido janeiro de 1991. Com a minha família, iniciamos a viagem por Paris e, após o deslumbre da capital francesa, era hora de pegarmos um trem para Veneza, em busca das nossas origens vênetas. Estava animado para finalmente viajar nos famosos trens modernos europeus que nos causavam tanta inveja.

Chegamos à Estação de Lyon em cima da hora e vi um trem com a placa Venezia; não titubeamos e embarcamos. Logo achei estranho o trem surrado, sujo e pouco iluminado... Nada das maravilhas que tinha ouvido falar sobre os modernos trens europeus de que temos tanta inveja.

Só fiquei sabendo da minha frustação, já com o trem tendo andado um bom pedaço, quando mostro o meu europass para o cobrador. Num precário diálogo, misturando italiano com francês, o cobrador me informa que embarcamos no trem errado; o trem francês que deveríamos ter tomado saía de outra plataforma. O trem em que estávamos se chamava o Simplon Express, que ia parar em Veneza, mas seu destino final era a capital da Iugoslávia, Belgrado.

Achei que o Simplon significava que o trem era simples, modesto, nada de luxo, mas foi batizado assim por passar pelo túnel Simplon, aberto em 1906, que cruza a fronteira entre Itália e Suíça. O cobrador, porém, não nos disse que, antes de chegar a Veneza, o trem faria oito paradas e levaria quase 16 horas, em vez das 11 do trem rápido. “Ironicamente, o trem, de expresso, tinha quase nada e é muito de simples”, eu refleti.

Notei que não havia turistas no trem, todos pareciam ser pessoas que moravam na França ou faziam compras lá, pois o trem estava abarrotado de mercadorias: malas, sacolas e caixas de eletrônicos. Me fez lembrar as excursões de brasileiros a Cidade del Este, no Paraguai.

Ao meu lado viajava um casal que falava uma língua diferente, que parecia ter muito mais consonantes que vogais, que imaginei ser do leste europeu. Troco um diálogo, de novo misturando italiano e francês, pergunto se são iugoslavos e me dizem que não, que são eslovenos e vivem e trabalham em Paris e estão levando encomendas para a família que mora lá. Infelizmente, não consegui expandir muito o diálogo por causa da barreira linguística, mas lembrei que, poucos dias atrás, a população eslovena, em estrondosa maioria, mais de 95%, votara pela independência e saída da Federação Iugoslava.

O destino final do trem era essa Iugoslávia, que, apesar de ficar na Europa, se localizava no cruzamento do Ocidente com o Oriente, da Europa com a Ásia e do mundo cristão com o muçulmano, fruto da divisão daquela região pelos impérios austro-húngaro e otomano e séculos antes pelo cristão e bizantino.

Isso fazia com que o país fosse um fascinante, mas complexo, mosaico de diferentes culturas, etnias, línguas, normas e tradições. A Iugoslávia, no final das contas, era uma multiétnica minieuropa, como definiu o cientista político Cornelius Adebahr.

O país surgiu após a II Guerra Mundial, na união de diversos territórios e países no Balcãs ocidentais, sob liderança do Marechal Tito. A Iugoslávia era a “queridinha” do Ocidente, por ter uma versão bem mais light de socialismo, conhecido como socialismo de mercado, e por não se alinhar à servidão de Moscou.

Tito teve a coragem de “brigar” com Stalin em 1948 para criar um sistema socialista que permitiu um maior papel do indivíduo. Eram permitidas propriedades privadas e os seus habitantes tinham liberdade de viajar ao exterior, algo impensável em outros países socialistas. Também a Iugoslávia exibia uma qualidade de vida invejável em comparação à maioria dos países do outro lado do Muro; eram considerados pelos demais como os “americanos” do mundo socialista.

Entretanto, como o Simplon Express, que deixou de circular em 1992 por causa da guerra civil na Iugoslávia, o país deixou de existir e se dissolveu em sete países: Eslovênia, Croácia, Bósnia Herzegovina, Kosovo, Macedônia do Norte, Montenegro e Sérvia.

Imagine um país menor que o estado do Rio Grande do Sul, com pouco mais de 23 milhões de habitantes, ter seu fim e se transformar em sete países diferentes com fronteiras, moedas e muita divisão. Exatamente o movimento contrário do que a Europa estava buscando, com a União Europeia.

O doloroso processo de dissolução da Iugoslávia gerou muitas guerras, vítimas e destruição. Ainda gera muitas emoções, de dor e até de ódio naquela região. E o que causou o fim da Iugoslávia? Segundo Richard Holbrooke, diplomata americano que liderou o processo de paz na região, a principal razão foi a exploração das divisões étnicas e religiosas por políticos oportunistas que usavam a mídia da época para disseminar teorias conspiratórias para gerar o ódio em relação aos vizinhos.

Os acontecimentos históricos da ex-Iugoslávia geraram inúmeros livros, filmes, documentários e exibições e continuam sendo uma rica fonte a ser explorada pelas artes. Recentemente, o filme bósnio Quo Vadis?, que concorreu ao Oscar, narra a dolorosa e emotiva tragédia da pequena cidade de Srebrenica, pelo heroico olhar de uma mãe que trabalha como tradutora para as tropas da ONU e que faz de tudo para proteger sua família.

Compreender o que aconteceu naquela região serve para entender o turbulento mundo que vivemos hoje. A própria Europa não vive mais a lua-de-mel do início da década de 1990, o processo doloroso do Brexit e sentimentos anti-imigração que estão sendo explorados por líderes populistas de forma muito semelhante ao ocorrido por líderes iugoslavos. E a disseminação de teorias conspiratórias pela internet, que exploram os extremos, se tornou uma praga mundial, acelerada ainda mais por essa maldita pandemia, que, às vezes, faz parecer que estamos vivendo num mundo impossível. Lembremos de Mark Twain!

Gustavo Miotti é economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

mail gmiotti@rollins.edu

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