Caxias do Sul 07/05/2024

O meu milagre de São Patrício

Antiga lenda irlandesa serve de alegoria para o recebimento da tão esperada vacina contra a Covid-19
Produzido por Gustavo Miotti, 26/03/2021 às 14:34:40
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Há quase três séculos, os Estados Unidos se tornaram o destino de milhares de imigrantes irlandeses. Junto com os italianos, eles foram seriamente discriminados por serem católicos, mediante uma população existente de maioria protestante. Mas, hoje em dia, o padroeiro da Irlanda, São Patrício, é amplamente celebrado pelos americanos no dia 17 de março.

Em Chicago, o rio homônimo à metrópole é pintado de verde, cor símbolo da Irlanda. A Casa Branca também tem suas fontes tangidas da mesma cor. Curiosamente, Biden é o segundo presidente americano católico e descendente de irlandeses, sendo o primeiro o inesquecível JFK.

Aqui onde moro, existe uma grande colônia de descendentes de irlandeses, facilmente identificados pelos sobrenomes, como Murphy e O’Sullivan - uma versão irlandesa de Santos e Silva - e o dia de São Patrício é festejado com um grande evento no centro histórico da cidade. A celebração me fez recordar as festas de Oktoberfest, com muita cerveja, comida e música típica, mas o que mais me chamou a atenção do Saint Patrick Day é que é uma festa da qual participa toda a família, desde bebês, cachorros e os vovozinhos.

Na rua principal da cidade, se realiza um tradicional desfile de comemoração à data, com singelos mas animados carros alegóricos das escolas, clubes e fraternidades. Para a alegria das crianças, também desfilam no cortejo os enormes caminhões dos bombeiros e os potentes carros da polícia local. O mais aplaudido é o xerife da cidade, por fazer um excelente trabalho de manter os “caras ruins” longe aqui.

E a influência irlandesa se estende à adoção de lendas do folclore celta na cultura americana. Meu filho, Francesco, há alguns anos, influenciado por um amiguinho da escola, acreditava piamente na lenda irlandesa do Leprechaun, que são azucrinantes duendes que guardam um pote de ouro no final do arco-íris. Para alcançar esse tesouro, é necessário, primeiro, capturar um leprechaun. Isso, por si só, é uma tarefa árdua, já que eles se escondem muito bem.

Representação artística de um leprechaun, pelo talento de Francesco

Motivado pela promessa do dinheiro fácil do pote de ouro, meu filho e o amigo ficaram elaborando planos e estratégias para capturar o duende, principalmente baseados em vídeos assistidos no Youtube, como “Armadilhas para pegar o leprechaun”. Inclusive, os meninos utilizaram, como isca para pegar os duendes, moedas douradas de chocolate. Obviamente, nunca acharam os duendes, mas sobraram as positivas lições da frustação.

Justamente no dia de São Patrício, 17 de março de 2020, há um ano, notamos que a pandemia era muito mais séria do que imaginávamos e se abria o ciclo do “novo normal”. As aulas dos colégios e universidades foram canceladas naquele dia e, de última hora, a própria festa de São Patrício na cidade foi cancelada, também. Abruptamente, máscaras, álcool gel e zooms entraram no nosso dia a dia.

De lá para cá, como na lenda dos leprechaun, desejamos incessantemente o pote de ouro da atualidade, que é o a vacina contra a Covid-19. Então, uma amiga mineira comentou, em um grupo de WhatsApp de brasileiros da região, que havia descoberto onde as vacinas que sobravam do dia são recolhidas: um hotel próximo a um shopping da região serve como centro de distribuição das tão sonhadas vacinas do condado onde vivo. Elas saem pela manhã para os diversos pontos de vacinação, principalmente supermercados e farmácias, já que postos de saúde pública não existem nesta terra.

As vacinas dos lotes que são abertos têm apenas validade para o dia, e as que são abertas, se não forem utilizadas, terão de ser jogadas fora. No dia seguinte, justo no dia de São Patrício, me animei e cheguei cedo da tarde no hotel e me informaram que tinha vacina sobrando para mim. Honestamente, pouco me lembro do resto.

Meio anestesiado pela notícia, só recordo de ter agradecido às enfermeiras e aos céus pelo meu milagre da vacina no dia de São Patrício. E senti que, justamente um ano após o seu início, o ciclo desta pandemia começou o início do seu fim. Se o seu milagre ainda não chegou, desejo que chegue o mais breve possível.

O autor deste texto, recebendo seu esperado pote de ouro do leprechaun, representado pela vacina

Gustavo Miotti é economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

mail gmiotti@rollins.edu

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