Caxias do Sul 06/05/2024

Quem inventou o soneto

As origens do feitiço encantatório de uma das mais populares formas do poema
Produzido por José Clemente Pozenato, 28/10/2021 às 08:07:16
Foto: Marcos Fernando Kirst

Os sonetos de Francesco Petrarca foram um modelo de poesia lírica para toda a literatura ocidental. Gregório de Matos foi, no Brasil, o primeiro a juntar água dos sonetos de Petrarca para a sua jarra.

Depois de Gregório de Matos, o soneto voltaria ao topo da glória na poesia de Cláudio Manuel da Costa. Teve um parêntese no romantismo e retornou com toda a pompa e circunstância no parnasianismo, que inventou o final com “chave-de-ouro”. Nem mesmo Machado de Assis foi imune ao seu feitiço. Pelo menos dois de seus sonetos ficaram na memória nacional: o alexandrino “Bailando no ar, gemia inquieto vagalume” e o “Querida, ao pé do leito derradeiro”, na despedida a Carolina, a sua Laura.

Os modernistas lançaram diatribes contra o soneto e tudo o que soasse ao modo parnasiano. Basta lembrar o poema satírico “Os sapos”, de Manuel Bandeira, declamado debaixo de aplausos na Semana de Arte Moderna de 1922.

Mas nem os maiores modernistas conseguiram resistir à tentação desse “pequeno acorde musical”. Drummond usou o soneto alexandrino, com rimas completas, rima interna e tudo o mais, para declarar seu Legado: “Que lembrança darei ao país que me deu / tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?”

Manuel Bandeira, no livro Lira dos cinquent’anos, passada portanto a febre demolidora de “Os sapos”, dá-se ao desfrute de escrever poemas com o título de “Soneto italiano” e de “Soneto inglês”. Isto é, mata saudades do modelo de Petrarca e do de Shakespeare.

E quem não conhece o “Soneto do amor como um rio”, do Vinicius de Moraes, com assonâncias internas como requinte?

Depois de haver traduzido os 317 sonetos de Petrarca, com o cuidado de não perder o som para os ouvidos, saí à procura dos mestres do Poeta, que ele não deixa de homenagear em seu poema Os Triunfos - I Trionfi. Em particular, saí à procura do inventor do soneto como forma lírica. Esse inventor só poderia ser italiano, para ter dado esse nome ao poema: soneto é um “pequeno acorde musical”, surgido quando a Canzone dominava todos os saraus de todas as cortes.

A única certeza que os arqueólogos da literatura têm em comum é que o primeiro poeta de que se conhecem os sonetos era da “escola siciliana”, de nome Giàcomo, ou Jàcopo, da Lentini. Era um notário, ou escrivão, da corte de Frederico II, rei da Sicília, que estimulou a produção de poesia em língua vulgar, a ponto de tornar a poesia siciliana uma referência para toda a Itália. Dante cita o poeta no Canto XXIV, sexto círculo do Purgatório, com o nome pelo qual era conhecido por antonomásia, O Notário (Il Notaro).

À falta de outras provas, ele é até hoje considerado o inventor dessa forma poética. Não há também certeza sobre as datas de seu nascimento e morte, mas seu nome é mencionado como membro da corte siciliana em escritos com data de 1233 e 1240. Dante nasceria em 1265 e Petrarca em 1304, ou seja, há uma geração separando entre si os três poetas. Giacomo da Lentini deixou 38 poemas de autenticidade reconhecida, mais dois ou três de autoria duvidosa. Desse total, 17 têm o nome de “Rime”, com o formato que em Petrarca é chamado de Canção. Os outros 21 são sonetos.

Seguem, na língua original e numa tradução que busca respeitar o essencial, ou seja, a métrica e a rima, dois sonetos do Notaro.

Observe-se que no primeiro deles a rima é plena, ou seja, rimam palavras inteiras, homonímicas, da mesma ou de diversa categoria gramatical, modelo que a tradução busca respeitar. No outro, a rima passa a ser apenas tônica, isto é, a partir da última sílaba acentuada.

A imagem da lanterna, no segundo soneto, inaugura toda uma lírica sobre o dentro e o fora do sentimento de amor. Aqui ela aparece num tom ainda ingênuo e direto. E, é claro, em italiano arcaico.

1.

O lírio, se colhido, logo é passo, Lo giglio quando è colto tost’è passo

pois que sua natureza não vem junta: da poi sua natura non è giunta:

e eu, assim que me afasto um passo ed io, da c’unche son partuto un passo

de vós, senhora, dói-me toda junta, da voi, mia donna, dolemi ogni giunta,

porque no amar a todo amante eu passo, perché d’amare ogni amadore passo,

e na altura meu coração se junta: in tanta altezze il mio core giunta:

assim me fere Amor, por onde passo, così mi fere Amor , là ‘vunque passo,

como águia quando à caça é junta. com’aghila quand’a la caccia è giunta.

Ai de mim, que nascer fui em um ponto Oi lasso, me, che nato fui in tal punto

de só amar a vós, não outra gente! c’unque non amasse se non voi, chiù gente!

Isto saibas, senhora, desta parte: questo saccia, madonna, da mia parte:

assim que eu vos vi ficou-me o ponto, in prima che vi vidi ne fui punto,

eu vos servi e louvei p’ra toda gente, serviivi ed inoraivi a tutta gente,

de vós, bela, meu coração não parte. da voi, bela, il mio core non parte.

2.

Como pode mulher tão grande entrar Or come pote sì gran donna intrare

por meus olhos, que tão pequenos são? per gli occhi mei, che sì piccioli sone?

E como dentro pode ela ficar E nel mio core come pote stare

E levá-la, aonde vou, no coração? che nentr’esso la porto laonque i´vone?

Onde ela entra não se vê o lugar, Loco laonde entra già non pare,

o que me dá grande admiração; ond’io gran meraviglia me ne done;

mas quero-a qual lanterna semelhar ma voglio lei a lumera asomigliare,

e os olhos meus no vidro pôr então: e gli occhi mei al vetro ove si pone:

o fogo incluso passa ao exterior lo foco inchiuso poi passa di fore

o seu lustro, e sem fazer ruptura; lo suo lustrore, sanza far rottura;

assim dos olhos passa ao interior, così per gli occhi mi pass’a lo core,

não a pessoa, mas a sua figura. no la persona, ma la sua figura.

Renovar-me eu quero de Amor, Rinovellare mi voglio d’Amore,

pois trago o estigma de tal criatura. poi porto l’insegna di tal creatura.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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