Caxias do Sul 25/04/2024

O exemplo de resistência da língua provençal

A fabulosa saga da fala típica advinda de região da Provença
Produzido por José Clemente Pozenato, 21/10/2021 às 16:38:57
Foto: Marcos Fernando Kirst

Os troubadours

A língua provençal – também identificada como Occitano e como Languedoc – foi a matriz de toda a poesia ocidental produzida depois do latim. Nela escreveram os troubadours (trovadores), que foram modelo para os poetas de todas as línguas neolatinas, do italiano ao português.

O mais famoso deles foi Arnault Daniel (1150-1210), que Dante, na Divina Comédia, chama de “il miglior fabbro” (o melhor artífice). E Petrarca, em Os Triunfos, o denomina “gran maestro d’amore” (grande mestre do amor), e também de “fra tutti il primo” (o primeiro de todos).

À medida que a poesia foi se expandindo e tomando vulto pela Europa, o brilho da poesia provençal foi sendo menos notado. O golpe fatal viria com a Revolução Francesa (1789), que decretou a “égalité” (igualdade) também na língua a ser usada na república. Essa política de uma única língua nacional se tornaria comum, o que aconteceu também na Itália com sua unificação, em 1870.

Na França, entre a Langue d‘Oc, da região da Provença, e a Langue d’Oïl, da região de Paris, terminou por prevalecer a segunda. Para esclarecer: no sul da França, se dizia “oc” para dizer “sim”, e no norte se dizia “oïl” (hoje “oui”) para dizer “sim”. Com isso, também a literatura em língua provençal entrou em risco de desaparecimento.

Os félibres

Em meados do século XIX – mais exatamente: a 21 de maio de 1854 – surgiu na Provença um movimento de luta pela preservação linguística, liderado por Frédéric Mistral e outros seis amantes da Languedoc, que deram ao grupo o nome de Félibrige. Esse nome significa “Colégio”, no sentido de associação, corporação. Essa organização existe até hoje na Provença, com encontros anuais para debates e lançamento de novos textos em provençal. Seus participantes são chamados de félibres, que se traduz por colegas, ou seguidores.

Sua primeira tarefa foi a de estabelecer uma regra ortográfica para a língua provençal, respeitada até hoje. A segunda foi criar o Almanach Provençal, publicação anual do grupo. A terceira foi a publicação do Trésor du Félibrige, um volumoso dicionário provençal-francês escrito por Frédéric Mistral.

Em 1891 foi fundado o jornal Aïoli, que extrai o nome de um molho típico da Provença. Foi uma publicação semanal, que tinha como principais objetivos difundir a língua provençal e ensiná-la na escola primária. Mas o governo francês, de nacionalismo radical nesse período, proibiu que ela fosse ensinada. Mais que isso: estabeleceu a regra de ser castigado o aluno que falasse a Languedoc dentro da escola.

A criação de Miréio

A grande marca deixada pelo movimento Félibrige foi o poema épico Miréio, escrito por Frédéric Mistral.

Mistral nasceu a 8 de setembro de 1830, em Maillane, na Provença. Filho de pequenos proprietários de terra, fez seus estudos no colégio real de Avignon, onde começou a escrever poemas em provençal, que seu colega Joseph Roumanille declamava. Depois formou-se em Direito em Aix, pela Universidade de Marselha. Em 1854 começou a trabalhar, discreta mas continuamente, no seu longo poema Miréio (Mireille, em francês), publicado cinco anos depois.

Essa obra levou o célebre poeta Lamartine a compará-lo a Homero: “Um grande poeta épico nasceu”, escreveu ele num jornal de Paris. Graças a esta avaliação, o poema e a popularidade de Mistral se alastraram para além de sua região natal. O sucesso parisiense da obra foi ainda reforçado em 1864 pela ópera de Charles Gounod, Mireille, cujo libreto é baseado no poema.

Com o novo século, chegaram as honras oficiais. Em 1904, Mistral recebeu a metade do Prêmio Nobel de Literatura, cujo valor ele doou para a construção, em Arles, de um museu consagrado à língua, à cultura e à literatura da Provença.

Sinopse de Miréio

Poema de doze cantos, impresso em 1859 em língua provençal, Miréio (Mireille) é uma obra-prima da literatura do século XIX. Nele, Mistral quis “fazer nascer uma paixão entre dois jovens de condições diferentes” e depois “deixar correr a trama ao acaso, como nos caprichos da vida”.

Essa paixão une Mireille, filha de um rico fazendeiro, a Vincent, moço bonito, eloquente, mas um pobre fazedor de cestos. Mireille despacha todos seus outros pretendentes. Fulo de raiva, um deles tenta matar o rapaz. Gravemente ferido, mas socorrido por Mireille, Vincent será salvo por uma curandeira da montanha. Desesperada pela recusa com que seu pai se opõe a seu casamento com Vincent, Mireille foge da fazenda da família e vai rezar no túmulo das Santas Marias, na Camargue, para dobrar a vontade paterna.

Vítima de insolação, ela morre, extática, diante do mar, depois de suas orações, deixando Vincent, que veio reencontrá-la, em desespero. Ao longo da epopeia, Mistral evoca todo o contexto da cultura provençal.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

Do mesmo autor, leia outro texto AQUI