Caxias do Sul 28/03/2024

Carta aos católicos caxienses

Documento histórico de mais de cem anos preserva episódio crucial na saga de Caxias do Sul
Produzido por José Clemente Pozenato, 14/10/2021 às 08:00:00
Foto: Marcos Fernando Kirst

Chegou a minhas mãos, não lembro mais em que circunstâncias, o fac-símile de um pedaço de página do jornal Il Colono Italiano, do ano de 1899. Esse foi o segundo jornal de Caxias, fundado pelo Padre Nosadini no ano anterior, em 1º de janeiro de 1898, para se opor ao primeiro, O Caxiense.

O fac-símile reproduz, em língua italiana, uma carta dirigida pelo Padre Nosadini aos “Católicos Caxienses” depois que ele foi forçado a sair da paróquia. Nascido em Bassano del Grappa em 1862, e batizado como Pietro Antonio Maria Umberto Nosadini, não havia ele chegado ainda aos quarenta anos, mas já vivera bom número de episódios dramáticos.

Não será preciso aqui reportar a trajetória do Padre Nosadini na Vila de Caxias: ela consta em todos os livros sobre a história da hoje Caxias do Sul. Para entender a carta (da qual traduzi os tópicos abaixo), basta lembrar que o conflito que o levou a fugir da paróquia de Caxias teve como principais adversários os maçons, que na época detinham forte poder de agregação política, econômica e também ideológica. O Padre Nosadini a escreveu quando estava partindo de volta para a Itália.

Seguem cinco tópicos emocionantes da carta.

A despedida

CATÓLICOS CAXIENSES!

O adeus e os agradecimentos que desejaria dar-vos de viva voz, eu devo limitar-me a confiá-los a este papel.

Quando esperava ver mudarem-se os espinhos em rosas, um espinho mais cruel transfixou meu coração forçando-me a isso. Minha dor, podeis imaginar, me fez tomar uma decisão que recusei sempre de pôr em prática quando se atentou contra a minha vida e se buscou fazer-me parar com toda espécie de libelos, de boatos, de ameaças.

Espero que com o tempo vai-se saber quem tinha razão, e se a justiça me for negada pelos homens eu a espero, a invoco e a aguardo de Deus.

Portanto adeus, meus caríssimos amigos, desiludidos em vossas justas esperanças! Obrigado, e obrigado de coração, pelo afeto que sempre me demonstrastes e que eu nunca vou esquecer. Perdoai-me se eu não correspondi de todo a vossa expectativa: se eu fiz pouco por vós, podeis crer que isso não dependeu de má vontade, mas da minha limitação.

O histórico pessoal

Ao vir para o Brasil não fui movido por fins humanos ou desejo de lucro, e ao partir posso afirmar que não deixei por menos meu objetivo.

Se não trago comigo dinheiro, de que não me ocupo, trago comigo um tesouro bem mais caro ao meu coração: eu posso dizer que onde quer que tenha ficado no Brasil os católicos foram largos em seu afeto.

E que meu pensamento voe primeiro para os bons católicos de Alfredo Chaves onde passei três meses quando recém chegado da Itália, de onde parti podendo exclamar: em Alfredo Chaves eu amo e, em troca, sou amado sem exceção por todos.

E que direi dos meus caríssimos amigos de Nova Pádua entre os quais passei quatro meses depois do atentado de 07 de fevereiro de 1897? Que direi da excelente família Mantovani que em Nova Pádua me concedeu uma hospitalidade tão gentil que eu considerava todos os membros daquela querida família, mais do que amigos, verdadeiros irmãos?

Obrigado, bons moradores de Nova Pádua, pelo afeto que me demonstrastes e assegurai-vos que não menor é aquele que eu nutri e nutro e nutrirei por vós.

Um obrigado de coração devo enviar também aos bons habitantes de Barão do Triunfo, onde passei dois meses em meio às mais corteses demonstrações de estima e de afeto. A vós, bons amigos de Barão de Triunfo eu faço votos de que possais em breve obter um Sacerdote indispensável para a vossa vila.

Considerações sobre a saída de Caxias

E o que direi a vós, católicos Caxienses? Se pudésseis ler no meu coração, veríeis o quão grande é a plenitude dos afetos que nutro por vós.

Houve um tempo em que muitíssimos de vós cerrastes fileira contra mim porque eu, obediente a uma ordem do Bispo, li na Igreja um documento que foi por muitos considerado falso.

Acreditai, a dor maior não senti quando me vi obrigado, da forma que todos vós sabeis, a deixar Caxias nas primeiras horas de 08 de fevereiro de 1897. Nem quando de mil maneiras se buscou fazer-me beber o fel. O maior tormento para meu coração foi quando eu me vi nu (como quem nasce) do afeto de tantos e tantos que eu não deixei de amar e de estimar:

Mas Deus me confortou e tenho o prazer de afirmar isso, pois aqueles que pela leitura daquele documento me foram contrários, convencidos depois da minha absoluta ausência de responsabilidade, vieram a estar entre os meus amigos mais queridos. E, para mostrar esse intento, contribuíram com a Sociedade Católica fundada por mim, dados os perenes desejos do Papa e de S.E. o Senhor Bispo diocesano, que em 27 de setembro de 1896 me escreveu: "Muito desejo a organização das sociedades católicas. O Papa Leão XIII sempre recomenda tudo quanto pode favorecer o ânimo dos católicos”.

Coragem e avante sempre, vos repetirei mais uma vez.

Uma palavra aos adversários

Uma palavra aos meus adversários. Vós cantais triunfo porque, quando menos esperáveis, vencestes, e eu dirijo também a vós uma saudação. Eu parto, mas eu não guardo rancor de ninguém, apenas meu coração sangra ao pensar que andais por um falso caminho.

E a vós, ó italianos, que abandonastes as práticas religiosas, que tendes até mesmo voltado as costas à religião, eu quero dizer: pela memória de vossa mãe, que com o leite instilou as santas máximas da religião, retornai um passo atrás, voltai a ser como éreis há alguns anos. Lembrai-vos daquele dia solene, em que pela primeira vez vos alimentastes do Pão dos fortes, lembrai os vossos propósitos daquele dia e depois jogai-vos nos braços do Crucificado. – Jesus está sempre com os braços abertos, desejoso apenas de vos apertar contra Seu coração e de vos fazer ver que não há verdadeira felicidade longe Dele.

Eu não creio vos ter ofendido, mas se contra minha vontade o tivesse feito, vos peço perdão, confiante em que se não o direis abertamente, o repetireis ao menos no vosso coração que eu outra coisa não desejava senão o bem, a prosperidade, o progresso de Caxias.

Saudação final

Católicos Caxienses!

Enquanto aperto todos vós contra meu coração, erguendo os olhos ao céu digo ao nosso Pai comum: Abençoai aqueles que foram meus queridos filhos. Guiai-os no caminho da virtude e oh! fazei com que se não nos foi dado estar unidos nesta terra, nos encontremos um dia reunidos e para sempre na Pátria Celeste.

E agora, repetindo-vos ainda uma vez obrigado e adeus, eu me reafirmo

Porto Alegre 09 fevereiro de 1899.

Vosso Afeiçoadíssimo in Corde Iesu, Padre Pedro Nosadini

Ex-vigário de Caxias.

A História do passado não contém somente fatos. Contém também fortes emoções pessoais, nem sempre lembradas.

Fac-símile da carta do Padre Nosadini publicada no jornal "Il Colono Italiano", em 1899

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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