Caxias do Sul 05/05/2024

Perfeita lembrança

Brumas de um passado urbano evocado pelo perfume das madressilvas
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 13/12/2022 às 09:15:24
Foto: Claudia Haupt

POR MARÍLIA FROSI GALVÃO

Se o tempo não passa de uma ilusão. Se o passado se faz presente em mim pelas lembranças de afeto armazenadas em algum recanto do coração, fecho os olhos para ver. Construo uma ponte imaginária entre o hoje e o ontem. A travessia me conduz a um lugar de magia. A brisa com perfume de madressilva me toca no rosto e na alma. Abro os olhos. Aqui, o futuro, o passado e o presente acontecem simultaneamente. Estou na “Casa da Liane”.

Vem comigo.

O portão de ferro não está trancado. Limiar da floresta de madressilvas crescidas de forma quase espontânea. Uma escada de cimento. Um banco de madeira. Um plátano. Paremos um instante para apreciar a Júlio. Tomara que os guris passem por aqui. Quem nos vê, da rua, sentadas nesse banco, não sabe o que há depois do barranco coberto por essa trepadeira volumosa. Ela nos presenteia com pequenas flores em tom de branco cremoso. Cheirosas. A florada inicia na primavera e permanece até o final do verão.

Vem.

Subamos por estes degraus. Ainda em meio aos ramos verdes, flexíveis, avistamos três casas de madeira encantadoras, ladeadas por árvores de várias espécies, laranjeiras, nogueiras, figueiras, horta e flores. Glicínias no muro de divisa. Sim, três casas no alto, além das madressilvas.

Vem, vamos!

Esta da frente é a casa dos nonos. Angelin e Rosa. Casal bacana. Ele, alto e magro. Músico. Toca clarinete. Quando não, esse instrumento descansa na despensa da casa. Nono Angelin sempre tem nos bolsos as balinhas Pepper, de hortelã. Dá mais uma? Ela, a Nona Rosa, pequena estatura, fofinha, com saias até os pés, sempre atenta à famiglia.

Vem, tem mais.

Ali, à direita, a casa da tia Nilte. Pessoa agradável, risonha, sempre de bom-humor. Em noites de sereno, ela não sai de casa sem colocar um lencinho no alto da cabeça. Liane, bota o lenço que tem sereno. Tia Nilte adora conversar e contar histórias.

Agora – a Casa da Liane – a amiga de sempre – desde a idade de seis anos, colegas de escola desde a primeira série, sentamos lado a lado no primário, no ginásio, no Curso Normal – e até em algumas disciplinas do Curso de Letras. Nesse alegre convívio, houve descobertas, muitas conversas, revelações, conselhos, estudos, namoros, reuniões, festinhas, cinema, boliche, bailes... Porém, aqui na casa da Liane, nos reuníamos por qualquer motivo: aniversários, estudos, paqueras, ouvir músicas. Como éramos felizes! Ríamos muito. Na verdade, éramos inocentes, e a nossa Caxias dos anos 50, 60 e 70 era tranquila, sem perigos e todos se conheciam. De que família tu é?

Ao apresentar a casa dos pais dela, uma sensação de extrema doçura me invade. A varanda com vasos de gerânios de várias cores. A sala de estar com poltronas vintage. A eletrola – Roberto Carlos, Beatles, Caetano, Gal, Bethânia, Chico Buarque e (curtíamos muito) músicas italianas: Gianni Morandi, Sergio Endrigo, Pepino di Capri... horas preenchidas pelo mais puro deleite também eram as que nos dedicávamos à tradução de letras da música francesa para o português - F... comme Femme (Salvatore Adamo), Que c’est triste Venise (Charles Aznavour), Comment te dire Adieu (Françoise Hardy), La fille du vent (Pierre Groscolas) ... Ah! Mon Dieu!

Os móveis em preto da sala de jantar, a cristaleira, a mesa onde fazíamos os trabalhos de escola, a cozinha com seus cheiros, o ateliê da Dona Yolanda, a mãe da Liane, que costurava divinamente, mulher elegante. Usava chapéu em datas especiais. O quarto da Loiva, a irmã mais velha, chique com seus vestidos rodados feitos pela mãe, o pai Guilhermo, que entendeu a Liane e a apoiou quando ela menos esperava, o Ciro, irmão do meio, sempre companheiro, alegre, fortão.

A família Rech era proprietária de vários terrenos e casarões na quadra da Júlio de Castilhos com a Guia Lopes, assim, convergiam os jardins e hortas em uma área comum na parte central e viviam ali desde os bisavós, avós, tios, cunhadas, primas. Hoje reflito pelo valor que era dado à família. E vejo o quanto era bonito esse modo de viver.

Esta foto - da Av. Júlio de Castilhos -, entre as Ruas Alfredo Chaves e Guia Lopes (em 1947), mostra, à esquerda, o morro das madressilvas junto ao jardim de uma das casas da Família Rech (Foto: Reno Mancuso)

Certamente nem tudo foi perfeito. Quem não tem problemas familiares e de relacionamento? Mas o que perfuma nossa alma são as boas lembranças.

Casas e seus entornos guardam segredos.

Assim,

Para voltarmos ao portão de ferro e sair para a Avenida Júlio, havia duas maneiras, para nós, gurizada. A primeira, rápida: escorregar de bunda no chão pela descida íngreme entre árvores, raízes, samambaias e hortênsias na divisa oeste com a casa da Marilia Rech. A gente se arranhava e se sujava, mas era pura adrenalina. A segunda, não tão emocionante, mas não menos adorável, por onde viemos – entre as madressilvas, o perfume e o significado tão oportuno –, elas expressam o amor em laços de amizade e de família. Fraternidade.

O “outro” lado da Júlio, as casas dos vizinhos de frente que apreciavam o perfume das madressilvas (Foto: Reno Mancuso)

Quantas vezes o meu coração esteve ali.

Perfeita lembrança nas brumas do passado e no perfume das madressilvas.

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista.

mail galvao.marilia@hotmail.com

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