Caxias do Sul 18/05/2024

Sapatos Azul Klein

Luta da mulher em busca da emancipação ocupa páginas nobres do melhor da literatura universal
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 12/11/2022 às 08:07:43
Foto: Claudia Haupt

POR MARILIA FROSI GALVÃO

Em minhas viagens literárias, estive na França, na Rússia, em Portugal e no Brasil, na segunda metade do século XIX. A releitura de clássicos da literatura mundial enriqueceu minha percepção sobre a luta contínua da mulher em busca de emancipação, igualdade, liberdade e respeito. A saber: Madame Bovary de Gustave Flaubert – Anna Karenina de Liev Tolstói – O primo Basílio de Eça de Queirós – Dom Casmurro de Machado de Assis.

Pela desafiadora leitura desses romances, constatei que o adultério feminino foi um dos temas mais instigantes e polêmicos apresentados na literatura desse período, pois escandalizou a sociedade de então. Adultério feminino era tabu. Atualmente, não. Embora a infidelidade da mulher seja uma temática bastante explorada desde a Grécia antiga, até os dias de hoje, seja na literatura, ou no teatro, era inadmissível, inaceitável pela sociedade no século XIX - pois levou escritores aos tribunais e algumas obras foram proibidas e/ou publicadas com cortes de censura. Talvez o adultério fosse a desculpa, porque, no fundo, eram os aristocratas dessa hipócrita sociedade patriarcal que não suportaram a crítica contida no desenrolar dos romances. Essas obras não eram vistas como arte, nem como ficção, e sim, como realidade.

Quanto a esses romances, pareceu-me que eles dialogam entre si. Contemplam os preceitos de um novo movimento literário em oposição ao Romantismo: o Realismo – o qual influenciou a Europa e o mundo - uma nova literatura de denúncia, de crítica à vida provinciana, às posturas, à pose e à aparência da pequena burguesia e da aristocracia – do clero – das fúteis moças burguesas – dos beatos – dos dândis - das vizinhas fofoqueiras e... “das adúlteras”. Historicamente, esse tema polêmico sempre foi considerado mais grave quando praticado pela mulher. (Hoje, continua em vigor esse pensar... mesmo não sendo mais considerado crime pela legislação.)

Nas vitrines das lojas, o Azul Klein na moda em pleno 2022 (Foto: Marilia Frosi Galvão)

Emma – Anna – Luísa – Capitu – as minhas leitoras – eu - somos apenas mulheres. Mulheres com qualidades e defeitos. Mulheres comuns tanto quanto a Maria Antonieta – a última rainha da França, segundo Stefan Zweig, seu biógrafo. Tornamo-nos incomuns quando a vida nos cobra imensos sacrifícios. E a tudo enfrentamos.

Emma – Anna – Luísa – Capitu são as personagens literárias centrais dessas obras que reli – fictícias – mas tão humanas!! Tão reais. Com frustrações individuais, infelizes nos casamentos (arranjados), belas, cultas, subjugadas pelo patriarcado, tratadas como objetos domésticos, destinadas a procriar e a obedecerem aos pais até casar, depois aos maridos. Além do mais, naquele tempo, a única maneira de ascender socialmente se dava pelo casamento. O preço? Subserviência total. E era frustrante – os maridos mantinham relações sexuais para procriar, não para dar prazer à esposa. Nada de romance, nem carícias, até algumas das palavras de “afeto” desqualificam-nas como mulheres – eram tratadas como “minha filhinha”, por exemplo. Enquanto isso, elas sonhavam conhecer o amor e a paixão que aflorava nos romances que liam. E sexo era assunto proibido. Creio que pela leitura de livros – escondidas – elas perceberam que estavam sendo sufocadas e que poderia ser diferente. Talvez de forma inconsciente, o livro tenha dado a elas a coragem para se defender – mesmo que transgredindo normas. Ainda hoje, a sociedade é preconceituosa – não convém abordar publicamente esse assunto – mas essas personagens femininas deram o seu recado. Desejavam a realização de um amor também sexual, em que duas pessoas se encontram, se completam, se realizam. Mas eram tão humanas... a Emma, a Anna, a Luisa, a Capitu!! Tão reais.

Emma Bovay – “Emma Bovary” – é a obra-prima de Gustave Flaubert. Livro lido e relido até os dias de hoje. Emma, a personagem central, tinha uma personalidade complexa, sonhadora, fascinante, ambiciosa, dramática, egoísta. Representa a classe burguesa entediada. Mulher no cativeiro. Ilusões românticas. Não foi feliz no amor com o marido, nem com os amantes. Vítima de uma sociedade hipócrita. Quando tudo deu errado, com os amantes, e com os credores batendo na porta... Emma ingeriu arsênico. Não por culpa, nem por remorsos, mas porque perdeu tudo e preferiu libertar-se. Essa história se passa numa pequena cidade próxima a Rouen, na França, em 1857.

Anna Arkadyevna Karenina – “Anna Karenina” – é a obra espetacular de Liev Tolstói. Anna – aristocrata russa que vive um caso extraconjugal. Enfrenta um enorme peso de inseguranças e solidão em uma sociedade falsa. Segundo os valores da época, ela tinha tudo para ser feliz: beleza, riqueza, um marido e um filho. Mas, para Anna, a sensação de vazio só desapareceu quando conheceu o Conde Vronsky, seu amante. Também teve um fim trágico, jogou-se nos trilhos, quando vinha um trem. Em Moscou. 1877.

Luisa – Luisa de Mendonça de Brito – “ O Primo Basílio” - obra de Eça de Queirós, pai do Realismo em Portugal. Nesta obra, que dialoga com Madame Bovary, a protagonista Luisa também provocou escândalo, pois tocou no maior valor da sociedade portuguesa: o casamento. O marido viajava muito – era engenheiro de minas – e, nesta história, o autor explora o mito do primeiro amor – Basílio – o primo de Luisa, que voltou depois de anos fora. E por aqui a protagonista tem um fim triste – o amante some e ela definha aos poucos. Morre de desgosto. Em Lisboa. 1878.

Capitu – Maria Capitolina Santiago - “Capitu” – obra de Machado de Assis. Ah, eu afirmo, sempre, que Machado foi um elegante. Nesta obra, Capitu, Bentinho e Escobar formam o triângulo amoroso mais conhecido da literatura nacional. Capitu – uma mulher avassaladora!!! Complexa. Bela. Tem personalidade forte. Sensual. Inteligente. Os seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” ou “olhos de ressaca” como as ondas do mar, que vão e vêm... O autor explora o tema do adultério e a sensualidade feminina, a ambiguidade, a sagacidade e a esperteza da mulher. Ele dá voz a Dom Casmurro, apelido de Bento Santiago – o marido ciumento, que conta a história. Nunca teve provas concretas da infidelidade da esposa, alimentou suposições de que Capitu o traiu com seu melhor amigo – Escobar. Bentinho desenvolve essa tese do suposto adultério - com prós e contras. Deixa a dúvida ao leitor: Afinal, Capitu traiu ou não traiu? Coisa de gênio. Repito – Machado foi e é um elegante. No Rio de Janeiro. 1899.

O título “Sapatos Azul Klein”

tem algo a ver?

Eu – Marilia -

Na Faculdade de Letras, estudamos o Realismo na Literatura. Na época, fiquei seduzida por estes autores. Porém, muito jovem e imatura, me ative somente às referências sensuais/sexuais. Eram histórias de amor para mim. Hoje, na maturidade, entendo o porquê do valor literário desses livros como uma influência para as mulheres do mundo todo. E que esses autores foram, indiretamente, feministas, pois criaram personagens complexas – elas serviram para denunciar o tratamento injusto, o confinamento doméstico, sem direitos nem mesmo de estudar em escolas ou faculdades. Eis o grande escândalo – as personagens transgrediram as regras, foi uma revolta feminina exposta em literatura igualmente transgressora e vanguardista para a época. Ítalo Calvino publicou uma obra interessantíssima: “Por que ler os clássicos?”. Atrevo-me a acrescentar: Por que reler os clássicos?

Sapatos do final do século XIX ilustram a capa de um caderninho de notas trazido diretamente de Paris (Foto: Marilia Frosi Galvão)

Não defendo o adultério – nem feminino – nem masculino, tenho consciência das consequências. Defendo o direito de as mulheres terem os mesmos direitos de igualdade com os homens. Homem e mulher são seres diferentes, que podem se completar, mas nenhum é mais ou menos que o outro. As mulheres são dignas de seus direitos ainda mais porque elas precisam e lutam por eles e pelo seu lugar no mundo. Têm mentes pensantes, são inteligentes e amorosas. Tão humanas quanto as heroínas das obras citadas. Com orgulho, constato que, pelo menos no Ocidente, as mulheres casam por amor, são muito bem sucedidas nas carreiras, competem em “quase” igualdade ao homem, e muitas outras conquistas virão, a nova mulher quer o “como” e não o “quanto”.

Ainda, pela fruição da leitura, amei constatar que Flaubert, Tolstói, Eça de Queirós e Machado conhecem em profundidade a alma feminina, em todas as nuances de sentimentos, angústias, desejos. Porém, eles usaram a figura feminina para criticar uma sociedade falsa. Elas pagaram alto preço pela infidelidade, pois foram castigadas com a morte – ou por escolha própria (Emma Bovary e Anna Karenina) ou pelo “destino” (Luisa e Capitu).

Tenho uma dúvida, me pergunto se a sociedade julgou essas mulheres por estarem fazendo amor com seus amantes ou... por elas não estarem em casa envolvidas nas tarefas domésticas, lavando pratos, polindo pratas... Dentro da ficção, ou não. Como leitora, percebi que essas personagens não eram devassas. Elas eram carentes de amor. Pelo menos o amor que idealizavam – o amor dos romances que liam. Penso, também, e isso é para pensar sobre: – a frase que os padres e juízes dizem antes do - “agora pode beijar a noiva”... aquela frase... sentença trágica: “Até que a morte os separe”. Por que não falar: – “Até quando for possível”?

A conselho da querida amiga Silvana – voltarei a usar aquele rímel azul Klein – quiçá, através dos cílios assim coloridos, volte a enxergar “tudo azul”. Óbvio. Minha cor preferida é o azul, em todas as 111 tonalidades. Le dernier cri, la grande mode à l”Europe et à Paris, dans cet année – le 2022 - c’est la couleur IKB –de Yves Klein.

O título Sapatos Azul Klein

tem tudo a ver

Azul Klein ou IKB é a designação da tonalidade de azul que Yves Klein obtinha de uma determinada quantidade de pigmentos. Fórmula registrada em 1960 protege a composição química do azul IKB.

Azul Klein é uma cor elegante, sofisticada, denota inteligência, eficiência, confiança. É cor instigante e também vanguardista – transgressora.

Sapatos Azul Klein podem ser vistos como uma linda metáfora. Sapatos femininos são fetiches. Representam as personagens “adúlteras” – Emma Bovary, Anna Karenina, Luisa, Capitu e tantas outras que trilharam por caminhos contrários aos estabelecidos em busca do novo, do inusitado. Seus pezinhos, calçados com botinhas de seda ou sapatinhos com salto carretel e fitas de cetim ou veludo, as levaram ao que elas acreditavam em sonhos – serem amadas de verdade.

Sapatos Azul Klein são um símbolo que também me permiti associar à modernidade das mulheres, eles configuram uma contínua caminhada. Sapatos Azul Klein abrigam os pés transgressores de mulheres que precisam trilhar por novas searas – à procura de liberdade – de sucesso em empreendimentos – de atingir um amplo cenário – até o grande horizonte, a fim de vencer os desafios e mostrar a que vieram.

Azul marinho... azul celeste... azul claro... azul cobalto... azul bebê... azul turquesa... azul índigo... azul real (royal blue)... azul petróleo... azul escuro... azul Klein...

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista.

mail galvao.marilia@hotmail.com

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