Caxias do Sul 28/03/2024

O panda e a águia: o despertar de um gigante

Uma análise atual e pertinente sobre a queda de braço entre as potências China e Estados Unidos
Produzido por Gustavo Miotti, 20/05/2020 às 16:48:09
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Logo após a queda do muro de Berlim, o cientista político e na época assessor da Casa Branca, Francis Fukuyama, ficou famoso ao chamar aquele momento de o “fim da história”. Esse termo explicava que a humanidade tinha chegado no ponto final da evolução do sistema de governabilidade com a vitória da democracia sobre o autoritarismo.

E foi um claro triunfo dos ideais promovidos pelos Estados Unidos de liberdade, capitalismo e democracia. Porém, com ascensão ao poder de Xi Jinping, a China vem contestando o status quo da existente Ordem Mundial, e isso tem causado muita apreensão. Parece que estamos vivendo os primeiros capítulos de uma nova Guerra Fria, acelerada drasticamente pela Covid-19, que tem provocado uma chinofobia nos quatro cantos do mundo.

Importante recordar que, há mais de duzentos anos, Napoleão profetizou: "Quando a China acordar, o mundo tremerá" e o despertar do panda traz repercussões enormes e sem precedentes. Nesta crônica, iniciarei minha análise pelos resultados positivos da transformação da China e depois farei um balanço dos enormes custos sociais e políticos que eles causaram.

É importante iniciarmos por um contexto histórico: apenas em 1979, os EUA e China estabeleceram relações diplomáticas, depois de oito anos de ativas negociações, período apelidado de Diplomacia Ping-Pong, pois envolveu competições deste esporte entre atletas de ambos os países durante alguns anos, até chegarem ao acordo diplomático.

Naquele momento, a China começa um lento movimento de abertura após desastradas tentativas de autoisolamento e self-reliance conduzidas por Mao Tsé-Tung, que levaram a milhares de vítimas. A China também entrou nas Nações Unidas e iniciou a sua abertura econômica conduzida de forma muito pragmática por Deng Xiaoping, que celebrou o processo de abertura com frases provocativas como: “Não importa que o gato seja branco ou preto, desde que cace o rato” e “não existe uma fundamental contradição entre socialismo e a economia de mercado”.

Os líderes que sucederam a Deng Xiaoping aceleraram as reformas pró-mercado e a China embarcou num projeto de desenvolvimento acelerado, não olhando para custos sociais e ambientais. E do míope ponto de vista econômico, foi um verdadeiro milagre.

Em 1990, ano em que o gigante acelerou sua abertura, o PIB per capita do Brasil era quase quatro vezes maior do que o da China; em 2019, o da China já era 20% maior do que o do Brasil. O grau de pobreza medido pelo Banco Mundial com pessoas que vivem com menos de U$1,9 ao dia foi reduzido de 24% para 0,1% em 2019.

Em ordem de manter o crescimento econômico, no ano 2000 a China estrategicamente decidiu mover o país da dependência de exportação baseada em mão de obra barata para uma economia baseada em conhecimento. Para consolidar essa mudança, o país tem massivamente investido em formar mão de obra qualificada, com recursos sendo colocados em todos os níveis da educação e com um foco em STEM (sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Para se ter uma ideia do progresso, no ano 2000, os EUA formavam 500 mil engenheiros por ano, enquanto a China pouco mais da metade.

Em 2019, os EUA formaram 800 mil engenheiros, enquanto a China graduou 1,7 milhão, crescendo mais de seis vezes em menos de 20 anos. Uma outra frente na educação é o programa de envio dos melhores estudantes para universidades americanas e europeias. Quase 700 mil chineses anualmente embarcam em programas de qualificação no exterior, sendo que a própria filha do presidente Xi Jinping estudou em Harvard de forma secreta e sob um pseudônimo em 2014.

Também na formação primária e secundária são impressionantes os resultados que o país vem obtendo. No último ranking do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), que compara o desempenho de estudantes na faixa etária dos 15 anos, a China ficou em 1º lugar na média da avaliação de conhecimento em matemática, ciência e leitura. Os Estados Unidos ficaram em 25º lugar e o Brasil, em 65º. O PISA permite que os países aprendam com as políticas aplicadas em outras nações, com o objetivo de melhorar a qualidade de aprendizagem.

Para se ter uma ideia da rotina das escolas secundárias, a maioria inicia suas atividades às 7h30 da manhã e vai até as 18 horas, com intervalo de duas horas para almoço. São comuns também aulas noturnas de reforço e aos sábados pela manhã. Em média, os alunos têm tarefas que consomem mais duas horas adicionais do seu dia. Em suma, os estudantes secundários passam surpreendentes 12 a 14 horas diárias na escola.

Xi Jinping tem focado nos últimos anos nas chamadas "três árduas batalhas", que são a prevenção de riscos financeiros (quebra de bancos e estatais), a redução do nível da pobreza e a prevenção e eliminação da poluição. O país tem dado passos importantes na mitigação do nível de poluição, com fortes investimentos em energia limpa e transporte mais eficiente, reduzindo a necessidade de utilização de carvão como fonte de energia.

Porém, é sabido que os custos dessa transformação foram e ainda são enormes. Por exemplo, o sucesso do sistema educacional tem um forte preço. Há uma enorme pressão das famílias sobre os filhos, que normalmente são filhos únicos, para ter sucesso na carreira, e muito se define pelo sistema de vestibular chinês, Gao Kao, que é extremamente seletivo. Segundo reportagens de ONG’s, há relatos de forte aumento no número de estudantes deprimidos e até do número de suicídios.

Apesar dos esforços atuais, na área ambiental, essa industrialização acelerada e com enorme descaso ao meio ambiente levou a enormes problemas na qualidade da água, solo e ar. Segundo o Instituto Americano de Efeitos sobre a Saúde, apesar das melhoras na qualidade do ar, a China terá 1,6 milhões de mortes prematuras por ano até 2030, causadas pelos efeitos da poluição do ar.

Mas o maior problema, de acordo com a Revista The Economist, refere-se à grave poluição do solo: mais de 20% das terras agrícolas estão contaminadas por químicos e metais como chumbo, arsênico e outros. Todos esses problemas no meio ambiente causam também uma grande preocupação dos chineses quanto à segurança da produção de alimentos no país e são comuns escândalos relativos à contaminação em alimentos por problemas no solo e água. Recordo que, por várias vezes, em conversas com chineses, quando eu tocava no assunto do problema de segurança pública no Brasil, eles me devolviam com igual complacência: “Pelo menos a comida no Brasil é limpa”, diziam.

Outra experiência que vivi, relativa à poluição, foi durante um curso que fiz em Pequim sobre negócios e cultura chinesa. Naquele mês que estive lá, o nível de poluição era tão grande que se recomendava que atividades ao ar livre fossem evitadas. Como havia americanos no curso, a embaixada dos Estados Unidos os aconselhava a usar VPNs (recurso para navegação anônima na internet) para acessar o site da embaixada americana, que mostrava o real grau de poluição, enquanto os sites e aplicativos chineses mostravam números bem menores do que a realidade.

Isso leva ao grave problema político: o país é uma ditadura sem uma imprensa livre e com total comando do Partido Comunista Chinês (PCC). Desde a abertura econômica, a China vinha promovendo uma tímida abertura política. Porém, com o novo presidente Xi Jinping, reverteu-se de forma radical e o fechamento político vem se intensificando. Sua ascensão ao poder em 2012 e sua consolidação tem tido uma característica de fortalecimento e centralização do poder.

Houve uma mudança fundamental de liderança coletiva, pós-Mao Tsé-Tung, para o one-man-show. Houve um retorno ao culto à personalidade, algo que não se via na China desde a época de Mao Tsé-Tung, porém, com toques de modernismo. No ano passado, o PCC lançou um aplicativo chamado “Xi, estudos de uma nação forte”, em que os cidadãos são encorajados a usar a ferramenta para estudar as publicações ideológicas do presidente. Os usuários acumulam pontos para cada resposta correta às perguntas relativas aos “ensinamentos do Presidente”.

Apesar de a China ter um sistema político baseado no comunismo, o gigante possui uma economia de capitalismo de Estado, na qual aceita o investimento estrangeiro com restrições, bem como o empreendedorismo privado. Porém, o grande player são as estatais, que, além de serem protagonistas no campo econômico, ajudam a manter controle político e social e estão ganhando força.

Para se ter uma ideia, todas as importantes decisões de negócio das estatais devem ser discutidas com o representante do Partido PCC dentro da empresa, antes de serem levadas ao conselho de administração. Funciona como um órgão de controle ideológico e político dentro da empresa. O presidente do conselho de administração e o chefe do PCC da estatal devem ser a mesma pessoa.

Também há uma forte repressão à liberdade de religião e opressão a minorias raciais e religiosas, como o povo tibetano e a população muçulmana Xinjiang. Há pouco mais de 15 anos, sob diversas restrições do governo chinês e da própria natureza da região, visitei o Tibete com minha esposa e ficamos impressionados sobre como a cultura e a natureza pura estavam sendo arruinadas pelo desenvolvimento desenfreado da China. Três anos após a nossa viagem, houve uma rebelião em grande escala da população tibetana contra essa invasão, com diversas mortes e destruição. Porém, de lá para cá, a mão pesada do regime comunista tem aumentado, havendo maiores restrições e vigilância sobre o pobre povo tibetano, sob a justificativa de que o governo chinês liberou o Tibete do feudalismo do Dalai Lama.

Esse crescimento e radicalização ideológica da China tem levado a “cimentar” uma posição de que os Estados Unidos devem ter uma posição mais firme e competitiva em relação à China. Esse é provavelmente o único tema de consenso entre republicanos e democratas na atualidade.

Tive a oportunidade de visitar pela primeira vez a China há quase 25 anos e é impressionante a dramática transformação que o país teve. A China das milhares de bicicletas e dos poucos Volkswagen Santana pretos só existe nas memórias. Hoje, vive a dos bike-sharing e de carros elétricos.

Neste balanço e reflexão sobre a China, não posso deixar de dizer que, na quase unânime maioria das diversas interações que tive com chineses, entre eles pessoas que considero amigos, dizem que as restrições do regime sobre a vida são compensadas pelas benesses que o desenvolvimento trouxe. Não tenho a pretensão de julgá-los.

Ilustração de GABRIEL TOO, exclusiva para este artigo

Gustavo Miotti, economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

e-mail: gmiotti@rollins.edu

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