Caxias do Sul 02/05/2024

'O GRANDE DITADOR': oito décadas, mais que atual!

Charles Chaplin, sempre grandioso, criou obra icônica sobre tirania com discurso final inesquecível
Produzido por Eulália Isabel Coelho, 18/10/2020 às 07:09:59
Foto: LUIZ CARLOS ERBES

Por Eulália isabel Coelho

“O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos”.

Nos 80 anos de O Grande Ditador, penso em como a figura de Carlitos sempre pareceu melancólica, apesar do apelo ao riso. Por isso, dizem que ele é trágico. A comédia que ali se engendra é um disfarce para a dor. Um disfarce que nos toca por sua universalidade.

E foi essa sensibilidade chapliniana que me levou às lágrimas ao ouvir o discurso final de O Grande Ditador, em um verão longínquo, numa Sessão da Tarde, em Santa Maria. Era um tempo em que os filmes de Charles Chaplin dominavam aquele horário na tevê, que nos oferecia comédias a mão cheia.

Rimos de suas gags desde a era do cinema mudo, quando ele reinou à frente de Harold Lloyd (aquele pendurado em um relógio no alto de um prédio em O Homem Mosca – 1923 – , lembra?), O Gordo e o Magro, Os Três Patetas e Buster Keaton. Eram tempos de uma inocência afeita ao pastelão e à poesia. Lírica associação!

Enrodilhada no sofá, senti a garganta unida ao verbo rasgado do falso Führer. Como era possível ser tão hábil na atuação e nas palavras? O Grande Ditador foi a primeira obra de Chaplin inteiramente falada. E ele a fez com o coração em punho ao tornar vazios os discursos de Hitler, do nazismo, do fascismo e de toda forma de poder absoluto.

Havia nele uma fome de dizer, de fazer-nos compreender a barbárie dos ditadores que somente sua sátira cabia como forma de expressão. Por isso, a fala do Barbeiro é hoje tão atual quanto o foi nos anos 1940 e ainda mais contundente. Parece que não aprendemos nada ou desaprendemos o pouco que sabíamos...

“Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela.

A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria”.

Cena incrível da “navalha musical”

A doce transformação de Hannah

O Barbeiro, assim como o vagabundo Carlitos, traz consigo uma ternura que nos abraça. Esse homem comum que deseja apenas retomar sua vida após a guerra, ainda que desmemoriado, se torna por acaso o duplo do poderoso e risível ditador Adenoid Hynkel, versão de Adolf Hitler na tela.

O despótico “imperador” que fará o globo terrestre flutuar em suas mãos numa dança entre elegante e infantilizada, carrega consigo algo de insignificante. Nessa sequência está toda a grandiosidade chapliniana em forma de alegoria. O balé que gira o planeta hoje é muito semelhante ao de Hynkel em sua megalomania: é vazio e impiedoso.

Hynkel abre a ferida do antissemitismo

A dança do planeta nos devaneios de um louco

Rever a obra, assistida tantas vezes, redimensiona seu caráter exultante em tempos nefastos. Se no Ghetto os judeus temem os soldados nazi, somente o barbeiro sem memória pode enfrentá-los. Ele e Hannah (Paulette Godard), que não entende porque as pessoas não revidam às humilhações sofridas. O Carlitos/Barbeiro nada mais é do que um sonhador cujo sonho está adormecido.

Sujeito ao revés dos acontecimentos, o Barbeiro não perde nunca a crença no amor. Na capacidade humana de afeto e compaixão. O mesmo amor que ele sente por sua Hannah, com a força desmedida de sua alma. O ápice do discurso final traz essa verdade.

“Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz!”

“Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!”

A fala emocionada do Carlitos/Barbeiro

Chaplin afirmou que só foi possível levar a obra adiante porque até aquele momento se desconhecia a real dimensão dos acontecimentos na Alemanha. “Se soubesse do horror dos campos de concentração alemães, eu não teria podido fazer O Grande Ditador”, admitiu. A figura de Hynkel sequer teria sido imaginada. Muito menos, um sósia para ele, assim como Benzino Napaloni (Jack Oakie) representando Benito Mussolini na tela.

Ditadores megalômanos medem forças

O Grande Ditador foi o maior desafio da carreira de Charles Chaplin em termos de produção e execução. Nos estúdios, dizia-se que o filme seria um desastre para sua imagem e os magnatas não quiseram investir nele. Familiares e amigos também tentaram dissuadi-lo. Ao levar adiante sua proposta, ele mesmo financiou a realização do filme que se tornou o maior sucesso de bilheteria de sua carreira.

O genial ator, diretor, músico e roteirista tinha uma visão crítica da humanidade e suas produções demonstravam isso, fosse qual fosse o enredo. Da denúncia social ao olhar atento aos fatos históricos, sua desenvoltura artística levou-o a projetos sempre autênticos, sem igual, marcadamente chaplinianos.

“Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim.

Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio.

Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros?

Assista ao discurso final de Carlitos/Barbeiro, AQUI

Recomendo o filme biográfico Chaplin sobre a vida e obra do cineasta, interpretada de modo inesquecível por Robert Downey Jr.. Assista ao trailer AQUI

FICHA TÉCNICA

O Grande Ditador

(EUA, 1940)


Direção: Charles Chaplin
Roteiro: Charles Chaplin

Produção: Charles Chaplin
Elenco: Charles Chaplin, Paulette Godard, Jack Oakie, Billy Gilbert, Reginald Gardiner, Emma Dunn, Henry Daniell, Maurice Moscovitch

Duração: 124 min

DE OLHO NO SET

O Grande Ditador foi indicado a cinco categorias no Oscar, não ganhando nenhuma:

Indicações
Melhor Filme
Melhor Ator - Charles Chaplin
Melhor Ator Coadjuvante - Jack Oakie
Melhor Roteiro Original
Melhor Trilha Sonora

A cena em que Hynkel brinca com o globo terrestre foi criada em 1928, para um vídeo caseiro. Chaplin, ao lembrar da brincadeira, reproduziu-a no longa.

O presidente Franklin Delano Roosevelt, ao saber das dificuldades de Chaplin para levar adiante seu projeto, enviou um representante da Casa Branca para encorajá-lo a fazer o filme.

Há relatos de que uma cópia de O Grande Ditador foi exibida em um cinema militar alemão e os soldados, revoltados, atiraram na tela. Há boatos, também, de que Hitler assistiu à obra privadamente.

Quando a Inglaterra e a Alemanha entraram em guerra, o filme foi usado como veículo de propaganda antinazista.

Chaplin não escapou à perseguição do macarthismo, movimento de "caça às bruxas" da década de 50, liderado pelo senador republicano Joseph McCarthy, autor de projetos de lei anticomunistas. O cineasta foi obrigado a deixar os Estados Unidos, acusado de traidor e comunista.

A primeira sátira antinazista feita no cinema foi o curta You Nazty Spy! (1940), dOs Três Patetas, lançado meses antes de O Grande Ditador.

Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora de cinema e escritora

mail bibacoelho10@gmail.com

Leia outro texto da mesma autora AQUI