Caxias do Sul 04/05/2024

Mundo rural e mundo urbano

A relação entre campo e cidade é tema recorrente na literatura universal
Produzido por José Clemente Pozenato, 09/11/2023 às 19:15:58
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”
Foto: Marcos Fernando Kirst

Um tema recorrente na análise dos processos culturais é o da relação entre campo e cidade, ou entre colônia e cidade, para usar termos locais.

Em meu romance O Quatrilho, todo ele com base nos hábitos culturais da época e dos lugares, coloco esta situação dramática: a de um casal da colônia que decide mudar-se para a cidade, em busca de novas oportunidades, principalmente econômicas.

Na “Última Contagem”, a cena se concentra na personagem Pierina assumindo, com estranheza, o modo de se vestir e de se aprumar, na cidade, para receber uma visita:

O vestido de seda custou a entrar no corpo. [...] Pena que não fosse um vestido longo, como se usava antigamente. Não se acostumara ainda com essa moda de vestido pelo joelho, mas era o que todas usavam na cidade.

Na literatura esse tema é frequente e, até, um dos temas básicos da poesia lírica. As Bucólicas de Virgílio, em que um citadino romano vê no mundo rural um universo perfeito, são até hoje uma referência para os poetas. Os poetas da Serra Gaúcha, pelo menos, antes mesmo do livro Matrícula, não se afastam um palmo da visão do mundo rural, como nestes versos de Virgílio (em tradução livre):

“Títiro, deitado à sombra dessa imensa faia

tocando para a musa tua flauta silvestre,

nós deixamos teu solo, os doces campos deixamos.”

Ao ler Drummond de Andrade, ou qualquer outro poeta contemporâneo, percebe-se como esse tema é recorrente E não apenas com a visão do poeta que, na cidade, recupera a memória do campo. Em Drummond, também oriundo do meio rural, a visão virgiliana está presente, como se vê, por exemplo, no poema Lembrança do mundo antigo, cheio de pontos de exclamação.

“Clara passeava no jardim com as crianças.

O céu era verde sobre o gramado,

A água era dourada sob as pontes [...]

Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!”

Mas imagens do mundo oposto, com o espanto causado pelos hábitos urbanos, também percorrem toda sua poesia, de que se tem amostra no poema Edifício Esplendor:

No cimento, nem traço

da pena dos homens.

As famílias se fecham

em células estanques.

O elevador sem ternura

expele, absorve,

num ranger monótono

substância humana.

Entretanto há muito

se acabaram os homens.

Ficaram apenas

tristes moradores.

Hoje vivemos num ambiente em que o mundo rural e o mundo urbano convergem cada vez mais, com o aumento e a diversidade dos meios de comunicação, que praticamente eliminam fronteiras. Mas, ainda assim, cada um deles guarda traços culturais que sobrevivem, e que ainda são lembrados em meio a festas, como a que há pouco se viu no festival da FenaMassa de Antônio Prado, num completo retorno ao inesquecível ambiente cultural das colônias!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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