Caxias do Sul 04/05/2024

As incontáveis situações dramáticas

As inúmeras possibilidades à disposição do criador que deseja montar um drama
Produzido por José Clemente Pozenato, 03/11/2023 às 08:37:51
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”
Foto: Marcos Fernando Kirst

Existe um livro, no mínimo curioso, para não dizer espantoso, intitulado As Duzentas Mil Situações Dramáticas. Seu autor é Etienne Souriau (1892 - 1979), pensador francês, que dirigiu a Revue d’esthétique e se dedicou a desvendar os meandros do teatro, por primeiro, e posteriormente do cinema, como um dos fundadores da filmologia. A obra foi editada em francês em 1970 e, em português, pela Editora Ática S. A., em 1993, com tradução de Maria Lúcia Pereira.

Metódico, Souriau começa pondo a pergunta: o que é uma situação dramática? Gasta trinta páginas para responder, concluindo com este resumo: “a situação dramática é um sistema de oposições e de atrações, de convergências em choque de cunho moral construtivo ou de explosão destrutiva, de alianças ou de divisões hostis”. Nascem desse entrevero de forças as funções dramatúrgicas, que são “os componentes dinâmicos” das situações dramáticas. Elas são como as “notas da escala musical”, que podem gerar um número infindável de combinações sonoras.

O estudo das funções ganha do autor sessenta páginas de análise, postas “num cadinho, se posso chamar assim”. Começa citando um inventário feito por outro pensador francês, George Polti (1868-1946), em livro por ele editado em 1895, com o título de As Trinta e Seis Situações Dramáticas. Souriau faz uma crítica veemente a esse inventário, mostrando que as 36 situações relacionadas por George Polti são na realidade funções que constroem os enredos dramáticos: “são essas mesmo as situações dramáticas? São situações? São todas as situações?”, questiona ele.

O restante do livro leva adiante o cálculo das situações possíveis, a partir de autores como Sófocles, Shakespeare, Corneille, Racine, Molière, Brecht, Ibsen e muitos outros dramaturgos, romancistas e mesmo cineastas. Tudo somado, ele chega, não sem ironia, a um número preciso: “210.141” situações possíveis, considerando os seguintes itens:

- o número de personagens

- o tipo de funções

- a combinação de funções

- as situações fortes e as situações fracas

- os recursos do ponto de vista

- a “comédia dos erros”

- a intervenção do sentido.

Ainda se divertindo com seus cálculos complexos, Souriau conclui dizendo:

“Não gostaríamos de cansar o leitor, esgotando (o que aliás exigiria 20 volumes!) nossa matéria [...] Viver dramaticamente é viver em união e em conversação íntima com o quase-infinito”.

De minha parte, não considero um exagero esse número proposto por Souriau. Considerando todas as variantes possíveis para os sete quesitos definidos pela retórica jurídica romana para caracterizar uma situação – quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando – o número de situações dramáticas passa a ser incontável.

Tudo isso serve de elemento motivador, tanto para quem escreve como para quem lê. O escritor tem à sua frente inúmeras possibilidades de montar um drama: o tipo de personagem (quis), que ação ela leva em frente (quid), que meios, recursos ou parcerias utiliza (quibus auxiliis), quais os motivos de seus atos (cur), de que modo age ou que posições assume (quomodo) e em que época da história tudo acontece (quando).

Para o leitor, as inúmeras situações dramáticas possíveis são um elemento motivador para a leitura: cada livro que ele tomar na mão esconde, certamente, novidades com que se surpreender...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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