Caxias do Sul 19/04/2024

Amigo à primeira vista

Diretor e ator Paulo José deixou marcas não só nas telas, mas também nas almas de quem teve o privilégio de conhecê-lo
Produzido por José Clemente Pozenato, 19/08/2021 às 07:50:13
Foto: Marcos Fernando Kirst

Neste momento em que o Brasil lamenta a despedida de Paulo José, figura marcante do teatro e da narrativa visual no cinema e na televisão, não posso me furtar de trazer à lembrança algumas passagens que vivemos juntos.

Tudo aconteceu quando ele dirigiu a gravação de O Caso do Martelo para a TV Globo, em maio de 1991. Ele chegou elogiando o ângulo de luz do outono, que ele considerava perfeito: não é “chapado” como o do sol do centro do país, disse ele, e isso ressalta o perfil das imagens.

Antes de colocar a câmera em movimento, ele se movimentou em busca de cenários em Caxias do Sul e vizinhança. O primeiro lugar visitado, comigo e a equipe de produção, foi o Mato Perso, que Paulo José apreciou muito. De lá saímos em direção a Nova Pádua, por uma estrada de chão. E quando chegamos no Travessão Alfredo – nome usado comumente para o Travessão Alfredo Chaves – ele foi taxativo: “Vai ser aqui a Santa Juliana!”, que é o nome do lugar do crime narrado na novela.

Os amigos ator/diretor e escritor saboreiam a fartura gastronômica da Serra Gaúcha (FOTO: Carla Pauletti/Arquivo pessoal)

Ao entrar ali numa casa típica das nossas colônias, para ver se poderia ser usada como cenário, uma integrante da equipe de produção reclamou que a mesa da cozinha era de fórmica. Fora da época do roteiro, portanto. Paulo José reagiu, rindo:

- Vocês acham que é fácil lavar mesa de madeira todos os dias?! A gente põe uma toalha em cima.

Mas o problema foi logo resolvido, porque a dona da casa tinha a mesa velha guardada no porão. Para alegria do Paulo José.

O bando de gansos que aparece na frente do carro do detetive Pasúbio – representado por Lima Duarte – foi gravado a partir de uma sugestão do Ary Trentin. Uma tarde, na casa do Travessão Alfredo, foi necessário lavar uma peça de roupa, e a dona da casa ofereceu um lugar para secá-la:

- Podem pendurar ela nos “ganso” ali da frente.

Paulo José, discretamente, se divertiu com a frase:

- Ela chama o ganso de “gancho” e o gancho de “ganso”!

Aí expliquei a ele que na realidade ela pronunciava as duas palavras de um modo em que o “ch” e o “s” sibilante tinham a mesma pronúncia: quem ouve é que faz a distinção. Ele riu e comentou:

- E com os “erres” é a mesma coisa, então?

- Sim. Quando dizem “farinha” parece “farrinha”; e quando dizem “farrinha” parece “farinha”.

A gravação do vídeo durou uma semana, com Paulo José atento aos mínimos detalhes: de cenário, de posição do corpo, de modo de olhar. Para se ter ideia do seu quase preciosismo, basta ver uma foto em que ele aparece deitado no chão, atrás de uma câmera, para verificar se aquele ângulo era de fato o que ele imaginava.

Preciosismos do diretor Paulo José em busca dos melhores ângulos para filmar “O Caso do Martelo” (FOTO: Carla Pauletti/Arquivo pessoal)

Mas a imagem mais forte que guardo dele é a de uma cordialidade que nunca o abandonava, com nenhuma pessoa e em nenhuma situação. Até para resolver problemas, usava o tom divertido com que falou da mesa de fórmica do Travessão Alfredo.

Paulo José foi, por isso tudo, um amigo à primeira vista.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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