Caxias do Sul 23/04/2024

Afinidades sempre existem

Certo episódio fez com que se percebesse que censurar os poetas não foi só obra do fascismo
Produzido por José Clemente Pozenato, 05/08/2021 às 08:10:25
Foto: Marcos Fernando Kirst

Quando meu romance O Quatrilho atravessou o Oceano Atlântico, um crítico português o elogiou, comparando-o, na forma e no tema, com os do escritor italiano Cesare Pavese, nascido em 1908. Obra e autor que eu nunca havia lido.

A partir daí fui à sua procura e, de fato, encontrei vários pontos de afinidade com ele. Também ele fez poesia, também ele foi professor de Literatura, também ele foi tradutor e também ele não tinha estômago para suportar ditaduras.

Li então seu romance mais famoso, La Luna e i Falò, de 1949, traduzido também para o português com o título de A Lua e as Fogueiras. E achei que o crítico de Portugal tinha toda razão em comparar com ele O Quatrilho.

O primeiro livro publicado por Cesare Pavese foi de poesia (como aconteceu também comigo!), com o título provocativo de Lavorare stanca: em português, Trabalhar cansa. Sofreu com a censura fascista para ser editado: o título era visto como uma provocação ao regime, que colocava a dedicação ao trabalho como a principal virtude patriótica. Como os extremos se tocam, a esquerda comunista pôs o foco no trabalhador, com uma diferença: a direita sacralizando o trabalho e a esquerda sacralizando o trabalhador. É o que ensinava Norberto Bobbio, pensador italiano, que viveu no mesmo período.

Outro poema de Pavese, Il dio caprone (“O deus bode”, de 1933) foi visto pela censura como uma caricatura de Mussolini, talvez não por acaso... Fosse esta ou não a intenção do poeta, foi ele condenado a anos de isolamento na Calábria, quando a cidade em que Pavese vivia era Turim. Foi jogado do extremo norte para o extremo sul da Itália, para cortar os contatos que cultivava.

Esse episódio fez com que se percebesse que censurar os poetas não foi só obra do fascismo. Durante o regime estalinista, um poeta russo, Osip Mandelstam, foi condenado a trabalhos forçados em Vladivostok, na Sibéria, por causa de uns versos em que fazia humor com os bigodões, o uniforme, os gritos e as botas lustrosas de Stalin. Estilo que Nicolás Maduro, na Venezuela, repete com toda a devoção...

Mandelstam não publicou o poema, nem o deixou escrito, para não correr risco nenhum. Mas uma noite, empolgado, numa roda de amigos tomando vodca, resolveu declamar os versos: e não é que havia ali num canto um delator que taquigrafou tudo e entregou para a polícia? Foram dezesseis versos que significaram sua sentença de morte: morreu na Sibéria de “paralisia cardíaca”, de acordo com a versão oficial.

Cesare Pavese, ao menos, pôde ainda dar o troco com estes versos que escreveu depois do exílio, e que vão aqui, em tradução livre:

“Privando-me do mar, do espaço para andar e voar

forçando-me a deixar o rastro dos pés em terra distante,

o que vocês conseguiram? Cálculo brilhante:

vocês não conseguiram extirpar

os lábios que se movem!”.

Afinidades existem sempre entre os poetas e os artistas. Como existem entre os ditadores, não importa a bandeira que ergam...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

Do mesmo autor, leia outro texto AQUI