Caxias do Sul 26/04/2024

Pollianna é muitas e todas ao mesmo tempo

A multiartista Pollianna Abreu dá o tom à cultura de rua caxiense com poesia marginal, slam, apoio a outros artistas e muita expressividade
Produzido por Marcos Mantovani, 16/07/2022 às 09:08:11
Pollianna é muitas e todas ao mesmo tempo
Foto: Marcos Mantovani

Por MARCOS MANTOVANI

Aos quatro, cinco, seis anos, Pollianna ia à igreja com a mãe, e ia ao bar com o pai. Bíblia materna, sinuca paterna. A menina captou logo que igreja e bar eram ambientes opostos em termos de comportamento, linguagem e tom. Primeira lição: lá sou uma, aqui sou outra.

O apelido do pai de Pollianna é Alemão. Foi Alemão quem mostrou cedo à menina que uma parte do Brasil acontece e irá sempre acontecer dentro de um bar. Não no mau sentido. No bom sentido. A alegria, a junção de gente, a solidariedade de balcão e o atravessamento cultural no meio do furdunço — isso tudo Pollianna viveu antes de ir à escola.

Janete, a mãe, era quem mostrava à menina um segundo tipo de Brasil, o Brasil evangélico. Os gestos de louvor, a via da salvação, a obediência tranquila e os sermões do pastor sempre cheios de analogias — isso tudo Pollianna também viveu antes de ir à escola.

Para demarcar bem esses dois mundos da infância de Pollianna, é preciso dizer (com o consentimento dela) que o grande trauma da sua meninice não ocorreu no bar, e sim na igreja, no dia em que o pastor bateu os olhos nela, armou uma cilada e revistou o corpo da menina com mãos infernais, as mesmas que apontavam para os céus.

livros, tiros, poesia marginal

Na zona norte de Caxias, o pai de Pollianna tinha o costume de espreitar as caçambas de entulhos, pois às vezes havia nelas livros descartados. Didáticos e de literatura, como Alice no País das Maravilhas. O pai recolhia os livros das caçambas, levava-os para casa e, com essa tática, lá pelos 5 anos de Pollianna, ele apresentou a leitura à menina.

Pollianna teve sua própria menina (Júlia) aos 17. Mas é impossível não mencionar que, três anos antes do nascimento de Júlia, Pollianna viveu uma experiência perturbadora que fez com que ela, no sétimo ano do fundamental, perdesse a concentração nos estudos e largasse a escola. O baque: seu primeiro namorado foi morto por uma bala perdida.

Pollianna seguiu a vida, mas sem a escola: ela finalizaria os ensinos fundamental e médio só aos 27 anos, por meio do Encceja. Só que isso diz pouco sobre Pollianna, sobre sua trajetória de aprendizados, já que ela vinha estudando por fora levas diferentes de conteúdos, que tinham a ver com processos culturais, inclusão artística, militância sociocultural e, claro, sua própria arte: poesia marginal.

Brasil, Caxias, independência

Ao longo do fim da adolescência e início da vida adulta, Pollianna percorreu o Brasil, engajada em três frentes sociais, cada uma a seu tempo: o Movimento dos Atingidos por Barragens, o Levante Popular da Juventude e depois o MST. O curioso é que, antes de se engajar, Pollianna nutria certo preconceito contra esses movimentos — isso mudou assim que ela foi apresentada às pessoas, às realidades.

Chegou uma hora em que Pollianna resolveu trocar as militâncias nacionais pelo ativismo cultural em um só lugar: Caxias do Sul. A atitude inicial foi mapear na cidade os lugares que estavam em segundo plano. Depois, meio que usando traços da pedagogia crítica freireana, ela passou a frequentar escolas periféricas para fazer com que a meninada enxergasse a possibilidade do amadurecimento e da autorrevolução por meio da arte.

Resquícios de Paulo Freire nessa abordagem transformadora que ela propunha, sim. Mas também resquícios da atitude resolutiva da própria mãe, que, por exemplo, em 1993, horas antes de dar Pollianna à luz, tomou uma decisão firme no momento de ir ao hospital, já que o carro da família tinha empacado e o mecânico vizinho não conseguia resolver. “Taca fogo nesse lixo que eu vou de ônibus”, a mãe disse, cheia de independência. E foi de ônibus mesmo.

slam

Slam é cultura de rua. Slam é batalha falada de poesia marginal/periférica. Slam é a cara de Pollianna. As poesias que ela cria (algumas se transformaram em audiovisuais superestéticos) falam de resistência, feminismos, observância, posicionamento — tendo como referência, para citar três exemplos, o cantor Itamar Assumpção e as escritoras Carolina Maria de Jesus e Cora Coralina.

“Além de batalha de poesia, slam é ferramenta, é espaço de fala e escuta, muita escuta”, ela diz. E foi de fato na escuta das periferias que a poeta marginal Pollianna, talvez sem perceber, acabou se transformado em várias outras mulheres, todas ao mesmo tempo: agente cultural, slammer, MC, DJ, pintora, secretária política no Fórum Hip Hop Caxias, conselheira no CMPC e uma das idealizadoras do Slam das Manas.

Polli + anna = polivalência, polifonia. O importante é que você saiba que, agora mesmo, ali fora, em alguma quebrada, praça ou perifa de Caxias, Pollianna está presente, criando poesia combativa a partir do cinza dos telhados e do opaco das janelas. Caneta nos dedos, uma tira de papel. Pronta para a luta.

*Veja um trecho de uma poesia de Pollianna - vídeo produzido por Marcos Mantovani AQUI