Caxias do Sul 26/04/2024

O que o tempo apaga

Conhecer o escritor irlandês John Banville na Festa Literária Internacional (Flip) em Paraty, no Rio de Janeiro, deu um impulso na minha carreira de leitora
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 13/03/2020 às 09:34:16
O que o tempo apaga
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista
Foto: Fabiana Frosi Galvão

Parece extraordinário o fato de viver. E o é, em especial quando estamos distraídos e algo nos surpreende e nos assombra. Assim, como num divisor de águas, nos tornamos outros. Conhecer o escritor irlandês John Banville na Festa Literária Internacional (Flip) em Paraty, no Rio de Janeiro, deu um impulso na minha carreira de leitora. Pois, se viver pode ser perigoso, nesse caso foi encantador. Sim, é essa a palavra, encantada, como nos contos de fadas. Imagine John Banville (extensa obra, prêmios, indicação ao Nobel) confessar ao público presente sobre não saber de onde vêm suas ideias para escrever, crê que seja dos sonhos, que ter dúvidas é estar vivo e ele, como escritor, é possuído por uma fascinação obsessiva pelo tempo que passou, e como esse passado se torna passado. Ele não tem resposta para essas questões. Às vezes, o escritor fica apontando o lápis durante manhã inteira, até ficar um toquinho. Diz ainda “eu não posso não escrever”, a frase é a maior invenção da civilização, a unidade básica, a essência para nós, a humanidade e, segundo ele, a única obrigação da arte é ser arte.

Sim, parece extraordinário eu ter tido a lembrança desse encontro em Paraty, cujos questionamentos, dúvidas e inquietações a respeito das memórias, dão importância da passagem do tempo, das visitas ao passado trazerem lembranças confiáveis, ou não, do vivido na infância e na juventude. Essas questões sempre foram e serão um mistério para mim. Sou incansável nessa busca de respostas, talvez encontre muitas, ou nenhuma. A pergunta é recorrente: “Existe alguma diferença entre a memória e a invenção”? Esse indagar alimenta a obra intitulada “Luz Antiga”, livro lançado ao público na Flip de 2013, completando uma trilogia – Eclipse (2000) – Sudário (2002) - Luz Antiga (2012). Por isso o encantamento. O que tanto me afetou, além da fala dele na mesa temática cujo tema era “Os limites da Prosa”, foi a leitura posterior das obras, cuja iluminação iniciou pela “Luz Antiga”.

“ BILLY GRAY ERA O MEU MELHOR AMIGO, e me apaixonei pela mãe dele. Talvez dizer que me apaixonei seja forte demais, mas não conheço palavra mais fraca que se aplique. Tudo aconteceu meio século atrás. Eu tinha quinze anos, e a Sra. Gray, trinta e cinco. Essas coisas são fáceis de dizer, já que as palavras em si não sentem vergonha nem podem ser surpreendidas. Talvez ela ainda esteja viva. Teria, o quê, uns oitenta e três, oitenta e quatro anos? Hoje em dia, nem é mais uma idade tão avançada. E se eu saísse à sua procura? Uma saga e tanto. Eu gostaria de me apaixonar de novo, só mais uma vez.”

Esse é o primeiro parágrafo de “Luz Antiga”. Não apenas uma história de amor, mas a história do primeiro amor, lembrada, ou inventada? Escrita em primeira pessoa, justifica o escritor preferir que assim seja, porque inclui mais que na terceira pessoa, não poder estar dentro dos outros, não obstante isso possa ser um limite da prosa.

Já na segunda página, vem o questionamento sobre a memória:

“O que me lembro dela, aqui nesses dias pálidos e suaves de passagem de ano? Imagens do passado distante se aglomeram na minha cabeça, e quase nunca sei dizer se são memórias ou invenções. Não que exista muita diferença entre as duas, se é que existe alguma diferença. Há quem diga que, sem percebermos, vamos inventando tudo à medida que avançamos, com bordados e enfeites, e me inclino a concordar, pois a Senhora Memória é muito dissimulada e sutil.”

Outras ponderações ocorrem para mim sobre esse encantamento: Luz Antiga, agora sem aspas, mais intimista, nos faz passear pelo tempo, e nos apresenta um personagem tão humano, que confunde as estações, a memória o trai, na ordem dos acontecimentos, mistura poesia e ficção em alguma forma nova. E as idas e vindas através do tempo lembram Proust. Em busca de... Reconhece em sua escrita ecos de James Joyce, Samuel Beckett, Nabokov e Saramago.

“Ocorreram para mim duas manifestações iniciais distintas da Sra. Gray, separadas por um intervalo de anos”. Na primeira vez ele diz ter uns dez ou onze anos. “... aquela sensação de ímpeto fluente, o vento arrebatando colheradas do ar azul e os pássaros fora de si nas árvores em flor... e o primeiro presságio que tive da mulher de bicicleta foi o sibilar de pneus, um som que me parecia erótico na infância e até hoje me parece, não sei por quê ... tive a impressão eletrizante de que ela acabara de descer do céu naquele exato momento: eu teria ouvido o som não de pneus no calçamento, mas de asas leves agitadas no ar... com que clareza ainda a vejo! Devo estar inventando, quer dizer, devo estar criando esses detalhes. Sua saia era ampla e folgada, e agora, a brisa de primavera a levanta, deixando-a exposta até a cintura. Ah, sim. ... Minha Dama da Bicicleta então, com suas ligas esticadas e suas calcinhas de cetim branco aperolado, tinha toda a graça de uma esguia escuna singrando sem medo as águas ao sopro de um forte vento de noroeste...” A segunda manifestação da Sra. Gray acontece quando ele vai visitar o colega, aos quinze anos...

Nesse contexto, as obras de Banville tocaram meu espírito, especialmente “Luz Antiga”, cujo ponto de partida foi sobre o amor e a fragilidade de nossas lembranças, das paixões e das perdas.

Olhando em retrospecto (que não me falhe a memória), fico surpresa ao ver como aprendi pouco até aqui, e há pouco tempo para muito mais. Enquanto tivermos memórias, inventadas ou não, existimos. Essas reflexões, com a luz de alguns trechos de John Banville (que são puro deleite), não têm a pretensão de ser uma resenha, ou qualquer outra definição que não seja um modo de compartilhar encantamentos, como um amigo-escritor-jornalista costuma dizer e fazer.

Grata, muito grata pelo convite dos jornalistas Silvana Toazza e Marcos Fernando Kirst para figurar nesse site, na seção “Na Caneta” em sua estreia. Essa honra e credibilidade depositadas em minha pessoa não serão apagadas pelo tempo, serão parte de mim únicas, inesquecíveis. Caso contrário, aqui fica o registro .

* Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista.

e-mail: galvao.marilia@hotmail.com