Caxias do Sul 02/05/2024

“Nunca quis que tivessem pena de mim”

Paula Ioris compartilha reflexões sobre o luto em livro comovente a ser lançado nesta quinta-feira à noite, em Caxias do Sul
Produzido por Silvana Toazza, 22/09/2022 às 08:59:53
“Nunca quis que tivessem pena de mim”
Com a obra, autora busca ajudar outras famílias
Foto: Silvana Toazza

POR SILVANA TOAZZA

“Superação” é uma palavra difícil de ser empregada por uma mãe que perdeu um filho no florescer da adolescência de forma trágica e injustificável. Paula Ioris prefere a palavra “enfrentamento”. Ao longo dos últimos 10 anos, a psicóloga, gestora de empresas e hoje vice-prefeita de Caxias do Sul dedicou-se a elaborar o luto, suas angústias, sensações, questionamentos, lembranças e a ressignificar, na medida do possível, a dor pela partida do filho caçula Germano Ioris de Oliveira, assassinado em 2012, então com 13 anos, na casa de um amigo no interior de Caxias do Sul.

Agora, “esse encontro consigo mesma”, como define, vem a público na forma de um livro confessional, de 264 páginas, contundente, com tristeza, mas também repleto de lembranças familiares perenizadas. Não aborda só morte. É também, e sobretudo, uma homenagem à vida.

Na obra, sob o título “Do Luto à Luta: Como Conviver Com a Pior das Dores?”, Paula Ioris compartilha aprendizados de “uma dor dilacerante, que arde”, mas cujo trauma transformou-se em causa, em missão, em ombro, abraço e voz para tantas outras famílias desamparadas por tragédias impossíveis de serem mensuradas.

“Eu nunca senti que a dor de outro fosse menor do que a minha”, destaca a autora.

O livro será lançado na noite desta quinta-feira, 22 de setembro, na Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim, junto à Casa da Cultura, e também na Feira do Livro de Caxias do Sul, no dia 15 de outubro.

Compartilhar sua forma de “enfrentamento” é ver o mundo com generosidade. É apontar alguns caminhos que precisam ser percorridos para recompor a alma e o espírito, permitindo o prosseguimento da vida de forma propositiva ao lado de um pesar que sabidamente jamais desaparecerá.

“Tento ajudar as pessoas a escolher um caminho que dói menos. O caminho da vingança, da depressão, do luto eterno é muito dolorido”, pontua.

Desenho da capa do livro foi feito em aquarela por Olívia, uma menina de 13 anos

Confira entrevista exclusiva conferida por Paula Ioris ao portal de notícias, no último sábado, na livraria Do Arco da Velha:

O livro nasceu como um diário, uma espécie de desabafo, terapia. Ou já pensava em transformar esses escritos em uma obra?
Já no início eu pensava. No dia em que eu tomei a decisão de escrever, foi 20 de setembro de 2012 (há 10 anos, completados na terça-feira passada). Eu sempre tenho inspirações no chuveiro. Eu estava tomando banho e eu pensei: “escrever um livro. Por que não?” Não via a hora de terminar de tomar banho, sentar e começar a escrever. E, então, eu comecei a escrever. Como foram 10 anos, ao longo desse período, eu tive dúvidas se podia ser um livro, mas houve momentos em que eu pensei: pode ser um livro e pode ser um filme também. Daí eu tinha mais gás ainda. Depois eu busquei o auxílio do (escritor) Gilmar Marcílio, que me indicou o Marcos (Marcos Fernando Kirst, consultor editorial da obra) para saber se o conteúdo se adequava a um livro.

E de fato o projeto deu certo e agora vem a público...
Tenho um sistema de crenças, tenho muita fé. Eu acredito que o que é para ser, as portas vão se abrindo, as coisas vão acontecendo, as pessoas certas vão cruzando o nosso caminho. Isso é em tudo. Basta termos olhos para ver. São os sinais presentes na vida da gente. Embora o formato seja com as datas dos escritos, nunca considerei o projeto um diário, mas uma ação, um encontro comigo mesma, que foi terapêutico, em que eu dizia como estava. Também percebi a importância de escrever para não esquecer dos sonhos que eu tive (com o Germano).

Houve momentos em que você escreveu muito e, em outros, houve uma pausa.
No início era mais frequente a escrita, depois semanal, depois mensal. Teve momentos em que fiquei um tempão sem escrever, mas eu também vi que eram momentos muito difíceis. Não fiz nada por obrigação.

O que te ajudou nesse processo de vivenciar uma dor tão profunda?
As coisas que eu fui descobrindo, os sinais. A própria Doutrina Espírita, que eu não conhecia, tinha ido apenas uma ou duas vezes em palestra de centro espírita a convite de pessoas de quem eu gosto. Não por eu ser uma católica fervorosa, porque sempre minha marca foi a fé. Eu oro de manhã pedindo discernimento para Deus, bom senso, lucidez. A descoberta da Doutrina Espírita não foi bengala, foi um entendimento da vida. Eu não uso a “superação” como palavra. Eu uso “enfrentar”. Eu fui enfrentando com dias muito difíceis de levantar da cama, mas cada um com seus mecanismos.

Com esse seu testemunho, por vezes forte, compartilhando sua dor, mas também a forma de convivência com ela, acredita que pode ajudar outras famílias?
Eu acredito que os processos que me ajudaram podem ajudar outras pessoas também porque, quando o luto vem, arrebatador, você quer sair daquela dor. Ela é muito forte. Não negar, mas tem de enfrentar. Porque nada traz de volta (a pessoa) e não adianta você se martirizar. Não tem de ficar se culpando das coisas. A dor já dói que chega, você ainda vai se culpar? Como foi a minha elaboração, ela me fez bem.

Há 10 anos, você recebeu uma das grandes provações da vida, de onde encontrou forças para lutar por bandeiras, ter se transformado em uma política que ajuda causas e atua de forma proativa na comunidade. Você, como diz o título do livro, transformou o luto em luta. Sente-se como uma inspiração para outras pessoas?
Nunca quis que tivessem pena de mim. Eu prefiro que me admirem, que percebam a força, a reação, a realização, isso engrandece. Mas pena, não. Fui muito atacada. Teve muita gente que me disse que eu usei meu filho para me eleger, mas isso nunca me afastou do caminho, pela minha convicção. Cada um põe para fora o que tem dentro. Quando enxerga alguma coisa maldosa em algum lugar, é porque essa pessoa tem dentro essa maldade.

Houve momentos de revolta?
Esses dias eu vi alguém dizendo: “Deus nem sempre é justo”. Isso não é Deus, é a nossa vida, a história de cada um. Mas isso é um olhar, uma compreensão, uma crença que cada um escolhe. Não é culpa de Deus. Nunca é. Ao contrário. Eu me uni a Ele para Ele me ajudar. Deus não dá uma cruz maior do que se possa carregar. Eu digo minha malinha, minha mochila. Se você tem uma evolução pessoal, de crença, de valores, tem uma reação mais madura. A gente não sabe por que isso aconteceu, mas o Ger (Germano) queria estar na casa do amigo (Vinícius, que reconheceu o assassino e foi morto assim como o pai, o empresário Gilson Fernandes). A gente tem de buscar meios de enfrentar.

E pensamentos de vingança...
Nós nos surpreendemos, porque nós nunca buscamos o caminho da vingança. Da Justiça, sim. Eu queria que eles ficassem presos para sempre (os dois assassinos, condenados, cumprem pena). Porque eles tiraram a vida de três pessoas e eu penso que a falta de liberdade é a maior pena que alguém pode ter.

Conheceu eles?
Sim, no julgamento. Eu estava sentava aqui como testemunha e eles ali. É como se eles não existissem para mim. Não penso neles. Não é que eu tenha perdoado, não sou hipócrita. Eu não fico pensando neles. Eu penso no Ger, nas coisas boas que a gente viveu. Houve um período em que eu comecei a pensar na situação de violência. Existe anestesia espiritual. Eu devo ter tido. Imagina que só alguns meses mais tarde eu fui pensar no que o Ger passou naquela hora, e antes eu não havia pensado nisso.

Paula Ioris contempla o resultado de 10 anos de escrita (foto: Silvana Toazza)

Qual o seu propósito com a obra?
Tentar ajudar as pessoas a escolher um caminho que doa menos. O caminho da vingança, da depressão, o caminho do luto eterno ou da “vitimez”, no sentido de sentir-se vítima, é muito dolorido. A dor está sempre ali, mas você não pode estragar toda a sua família, tenho outro filho, tenho pena das mães que só têm um filho. E encontro tantas que perderam. Uma revolta imensa. Eu nunca senti que a dor de outro fosse menor do que a minha.

O tempo ajuda?
Ele ajuda dependendo da forma como você escolhe viver esse tempo. Parece que foi ontem. Você diz: “como assim, já passaram 10 anos?”. O tempo ajuda tudo, sim, se você escolhe vivê-lo colocando uma causa junto, buscando um entendimento, e também vai mudando o tipo da dor. Há momentos em que a dor arde. É horrível. Quantas noites.... Nós (referindo-se ao marido Rogério Alves de Oliveira, que estava junto na entrevista), caminhando à beira da praia em Xangri-lá, não conseguíamos falar sem chorar (por conta da lembrança das últimas férias passadas em família, com o Germano). Era uma dor imensa. Com o tempo, isso acalma e você tem de se proteger de alguma forma. Lutar por alguma coisa.

Buscar ressignificar, percorrer o caminho da generosidade em vez da dor isoladamente...
Isso, eu li muito. Temos um livre arbítrio de fazer as escolhas, mas há uma trajetória para passarmos aqui. Não vou chamar de destino. Há resgates. Eu acho que, sim, a minha é uma história bonita de enfrentamento, mas respeito todas as outras. Acho que é um caminho mais tranquilo quando a gente encontra essas respostas. Cada um tem a sua história, mas quem passa por isso não tem medo de mais nada. O que vai ser pior? Procuro estar com a consciência tranquila. Tudo, absolutamente tudo o que acontece com a gente, é para crescermos.

O que as pessoas devem falar para uma mãe e um pai que passaram por algo tão absurdo como a perda de um ente querido para a violência?
Muita gente me diz: “eu não sei o que dizer quando vou falar com uma pessoa que perdeu um filho”. Eu respondo: “vai lá e dá um abraço. Fica perto. É muito importante”. Não esqueço do jeito que as pessoas me ajudaram. Muitos dizem: “nunca sei se falo do teu filho contigo”. Fala, eu adoro falar dele. Não fica lá dizendo “força”. Até é melhor não dizer nada. Fica perto. Diz “eu estou rezando por ti para que fique bem”. É uma dor muito horrorosa. Cada um reage de um jeito. Quando ocorreu comigo, fui procurada por pessoas que me ligaram, me deixaram recado, e justamente pessoas que tinham perdido familiares, que se sensibilizaram.

Muita gente procura você ainda hoje para buscar conforto?
Sim, muitas famílias me procuraram, pessoas me aproximam de outras pessoas que perdem familiares, filhos, casos horrorosos de várias partes do Estado e do país, pois nem sempre fico sabendo. Eu converso, acompanho, para mostrar algum caminho de reação.

Como se sente hoje?
Se eu paro para pensar, me pergunto: “como o Ger não está aqui?” Eu sinto ele no meu coração. Para mim, tenho de falar com o Gui (Guilherme, engenheiro civil, primogênito que mora em Porto Alegre), porque o Ger já está aqui (apontando para o coração).

Programe-se

Lançamento do livro “Do Luto à Luta: Como Conviver Com a

Pior das Dores?”

yesQuando: dia 22 de setembro, às 19h

yesOnde: Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim (Rua Dr. Montaury,

1.333, Caxias do Sul)

yesAutora: Paula Ioris

yesDados técnicos: 264 páginas, Editora São Miguel, Caxias do Sul

yesPreço: RS 60, à venda no local, ou pelo site da livraria Do Arco da Velha

Sessão de autógrafos na 38ª Feira do Livro de Caxias do Sul

yesQuando: dia 15 de outubro, às 17h

yesOnde: Espaço 2, na Praça Dante Alighieri