Caxias do Sul 02/05/2024

MAESA: "O caminho é esse, mas o público não pode atrapalhar o privado"

Dando sequência à série de reportagens sobre a revitalização desse patrimônio histórico, portal de notícias entrevista com exclusividade bisneta de Abramo Eberle
Produzido por Silvana Toazza, 06/09/2022 às 16:18:26
MAESA:
Bebel Eberle em frente à foto da velha funilaria de Abramo e mostrando caderneta com anotações do bisavô
Foto: Silvana Toazza

POR SILVANA TOAZZA

Maria Isabel Eberle (conhecida como Bebel) é bisneta de Abramo Eberle, o empreendedor italiano que protagonizou a Revolução Industrial em Caxias do Sul no século XX.

Considerado um dos maiores empresários gaúchos de sua época, Abramo Eberle imprimiu seu nome na história ao adquirir aos 16 anos do pai José e da mãe Gigia Bandera uma funilaria e imediatamente colocar o nome que viraria uma marca industrial de referênca mundial. A Metalúrgica Abramo Eberle SA (MAESA) chegou a ter quatro unidades fabris em Caxias, sendo a Fábrica 2 o centro das atenções da cidade no momento, pelo seu processo de restauração e futura licitação.

“Nunca dissemos vamos para a MAESA, mas sim para a Fábrica 2. Todas eram MAESA”, lembra Bebel.

Revitalização tem como fio condutor resgate cultural e histórico, incluindo museu para os pioneiros da indústria. Na imagem, o primeiro é Abramo Eberle, seguido por Paulo Bellini (Marcopolo) e Raul Randon (Empresas Randon) (Perspectiva por Vazquez Arquitetos)

Acostumada a ouvir relatos do bisavô, que não conheceu, mas se sente íntima por conta de leituras e do que ouviu do pai Cláudio Eberle e do avô Júlio Eberle, Bebel, com formação em arquitetura, conhece muito bem a Fábrica 2, e não tem dúvidas. Está convicta de que o modelo de Parceria Público-Privada (PPP) - em processo de andamento pela prefeitura de Caxias – com vistas a revitalizar o conjunto de 19 prédios tombados é um caminho viável para o resgate desse patrimônio histórico e sua transformação em uma alavanca que conecte Caxias do Sul à rota turística da Serra Gaúcha.

No momento, dois consórcios estão habilitados a elaborar e entregar os estudos de viabilidade econômico-financeira até dezembro deste ano ao Executivo municipal.

“Realmente, PPP é o caminho para tudo acontecer, e conciliar as duas empresas seria o ideal. A prefeitura não tem condições financeiras de assumir esse megaprojeto. E existe essa necessidade. Caxias do Sul precisa resgatar a sua essência cultural”, pontua, complementando:

“Eu acredito que o caminho é esse, público-privado. Só que o público não pode atrapalhar o privado. Aquilo é uma área muito grande, nobre, que pode mudar a face da cidade”, ressalta a bisneta de Abramo.

Abramo Eberle em 1930

ORIGEM ITALIANA

Abramo, de origem italiana, veio ao Brasil acompanhado do pai José, da mãe Luigia Carolina Zanrosso Eberle (Gigia Bandera) e da avô paterna Catarina. Não vieram para fugir da miséria. José tinha boas condições financeiras, mas se decepcionou em sua cidade-natal, Schio, por ter sido avalista de um empréstimo bancário tomado por um amigo que estava investindo numa fábrica têxtil. O calote veio. Nunca recebeu o dinheiro, e transferiu seus recursos e energia na nova terra, o Brasil, mudando os rumos familiares. José trouxe na mala mudas de macieiras e pessegueiros. Veio por escolha, não por necessidade.

“As primeiras macieiras que vieram para o Rio Grande do Sul foram trazidas por ele. Não conseguiram trazer muito utensílio”, destaca Bebel, que conheceu a história dos antepassados em visita à Itália.

Aqui, na terra fértil, foi adquirindo várias terrenos e instalando os negócios.

PERFECCIONISTA E DETALHISTA

Bebel Eberle lembra que o bisavô era muito perfeccionista e detalhista, com uma letra impecável. Preserva no acervo familiar fotos e as cadernetas com anotações empresariais, naquilo que define como “manuscrito perfeito”.

A família Eberle marcou Caxias do Sul por sua vocação empresarial e por possui várias áreas de terras, investimentos, empresas. Os descentes de Abramo moravam em casas construídas na Chácara dos Eberle, cuja mansão “casa rosa”, pertencente a Júlio e Alda Eberle (avós de Bebel), foi cenário de casamentos. Até hoje a residência emblemática foi mantida, como espaço nobre de eventos (e casamentos), junto a um dos condomínios mais nobres da cidade, o Reserva Casa Rosa, que ocupa o mesmo terreno que sediava a chácara dos Eberle, no qual Bebel relata as histórias de seu apartamento com vista para o Parque Getúlio Vargas (dos Macaquinhos), cenário em que se criou.

A rainha Marilia Conte (no centro) entre as princesas Silvana Moreira, Bebel Eberle, Magda Martini e Nora Torelly (foto: Edson Correa)

PRINCESA DA FESTA DA UVA 1981

Bebel foi princesa da corte da Festa da Uva de 1981, naquele ano formada por cinco soberanas, tendo Marilia Conte como rainha. Acompanhou a transformação de uma Caxias do Sul colonial para uma das maiores potências industriais do país.

Em meio à entrevista, a irmã de Bebel, Marta Elisa Eberle, chega e participa do bate-papo. Demonstra otimismo com a evolução do projeto de revitalização da Fábrica 2 da MAESA e acredita que esse é o rumo para vincular a cidade com sua verdadeira força. Seu olhar é de quem é caxiense, mas viveu mais de duas décadas longe daqui.

"Caxias se despersonalizou. Tem galeto, massa, polenta, mas é necessário resgatar o cerne da sua personalidade”, destaca Marta.

Ambas demonstram empatia pelo conceito de “cidadela” já expresso no Plano Geral de Ocupação pela Vazquez Arquitetos.

Bebel entende o espaço como um retorno ao passado, num resgate da memória, evocando a Vila dos Distritos da Festa da Uva. Acredita no poder de utilizar a essência da cultura e da tradição italianas, desde a gastronomia, num mergulho à arte de produzir pão, galeto al primo canto, grôstoli, salame. Mas ela vai além: aposta na importância de mostrar o vinho artesanal de garrafão, produto que foi o embrião da vitivinicultura da Serra, e da necessidade de resgatar filós, jogos de cartas, escola de música, canto, aulas de dialeto Talian, de artesanato, de crochê.

“Temos de vender o que é nosso, genuíno. Você acha que o turista quer ver o quê?”, questiona Bebel.


VISIONÁRIO E AUTODIDATA TOTAL

Abramo Eberle estudou até conseguir fazer contas e ler. Poucos anos. Mas tinha um tino impressionante para negócios. Em uma viagem para São Paulo para adquirir maquinários, levou queijo, salame e vinho consignados para amenizar os custos. Vendeu todo o lote de vinho, após um comprador identificar o produto igual a um que havia adquirido a preços caros como sendo supostamente italiano. Júlio Eberle, avô de Bebel, foi quem mais tempo ficou à frente dos negócios, por mais de 20 anos, após a morte do pai Abramo (com 65 anos) e do irmão mais velho José (Bepin).

“Meu avô e meus pais foram para a Europa adquirir equipamentos para fazer a Fábrica 4 no São Ciro. Eles ficaram quase quatro meses fora”, lembra Bebel, que na época tinha cinco anos.

Bebel relata o grande boom ocorrido na empresa, durante a Segunda Guerra Mundial. Quando o Brasil entrou na Guerra, em 1942, passou a demandar armas, munições e motores para aviões. Nos Estados Unidos, a produção era insuficiente. A Metalúrgica Abramo Eberle SA acolheu os pedidos, o desafio e se focou na nova missão.

Fábrica 2, em área de 53 mil metros quadrados em 19 pavilhões, aguarda por revitalização (foto: João Henrique Ramos)

Para conhecer

yesA Metalúrgica Abramo Eberle teve como primeira peça produzida uma lamparina de querosene. Em 1918, começou a produzir talheres, cutelaria e objetos de mesa. Entre 1923 e 1928, foi instalada uma forja que permitiu a produção de armas para o Exército como espadas e facas, ao mesmo tempo em que se inaugurava uma seção de produção de rebites e botões de pressão, e outra para fabricação de artigos sacros.

yesDificultadas as importações durante a Segunda Guerra Mundial, a Eberle passou a fabricar motores elétricos, além de ampliar suas instalações construindo um grande conjunto de edifícios no centro da cidade (a Fábrica 2). No fim da guerra, seu campo se ampliou para as máquinas domésticas, tesouras e artigos de montaria. Em 1966, tornou-se uma empresa de capital aberto, iniciando a construção do Parque Industrial de São Ciro, com uma área de 427 mil m². Com a expansão do mercado de têxteis na década seguinte, investiu na área de componentes de fixação como botões, ilhoses, rebites e fivelas, ampliada em 1982.

yesA tradicional metalúrgica foi comprada em 1985 pela Zivi-Hércules, surgindo então o Grupo Zivi-Hércules-Eberle. Esse grupo passou por nova reorganização, transformando-se na empresa Mundial SA, mantendo linhas de produtos com o nome Eberle.

yes Os antigos prédios centrais da Metalúrgica Abramo Eberle (Fábrica 2) são hoje patrimônio histórico tombado de Caxias do Sul. No passado, já teve como inquilina a empresa Voges.