Caxias do Sul 07/05/2024

E o vento levou... a Vila Braghirolli

Quando as casas são demolidas para dar lugar a outras construções, para onde vai essa alma?
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 11/08/2021 às 09:42:22
E o vento levou... a Vila Braghirolli
Antigo postal de 1910 mostra a fachada da alfaiataria dos Braghirolli (a menininha com a boneca é a pequena Yolanda)
Foto: Marilia Frosi Galvão

Por Marilia Frosi Galvão

Dizem que as casas antigas têm alma. Acredito. Elas têm vida própria, ruídos, sons. Abrigam entre as paredes, chão e teto os sonhos e a vida cotidiana dos moradores.

Guardam sentimentos, descobertas, alegrias, confraternizações, lutos, perdas, amor e esperanças vividos ali. Quando as casas são demolidas para dar lugar a outras construções, para onde vai essa alma, miríade de energias impregnadas ao longo de tantos anos? Seria como o dissipar de uma neblina?

Audácia é do que preciso para colocar em uma folha em branco a alma de um casarão antigo, cuja história abraça muitas vidas entrecruzadas: a Vila Braghirolli. Não somente audácia, mas convicção, para trazer para a luz memórias herdadas e memórias construídas. Heranças afetivas. As pessoas, as famílias, a praça, a igreja, as casas, os jardins...

Tudo começou em 1875, com a chegada dos imigrantes, italianos na maior parte. E nos anos seguintes, o pequeno lugarejo que se chamaria Caxias progredia - foi erguida a Igreja Matriz, hoje Igreja de Santa Teresa. A organização do largo, futura praça Dante Alighieri, e da Rua Grande (assim se chamava a Avenida Júlio de Castilhos) mudaram a paisagem. Ao longo dos anos, novas construções, palacetes elegantes, sobrados em alvenaria, clubes e associações foram construídos. Porém, a maioria das casas ainda era de madeira, pois havia araucárias em abundância na região naquela época.

Assim, por tradição, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, o lugar mais efervescente que havia era a Praça Dante e as ruas de entorno – Dr. Montaury, Sinimbu, Marquês do Herval e Avenida Júlio de Castilhos com traçado de ruas retas que se cruzam na perpendicular, formando um xadrez.

E... nesse xadrez, a meia quadra da praça Dante, na Avenida Júlio de Castilhos, 1886, frente Norte, entre as Ruas Dr. Montaury e Visconde de Pelotas, situava-se a Vila Braghirolli. Hoje, resta um pequeno detalhe desse existir que o tempo não apagou. Visualizei-o dia desses, ao passar pelo local onde hoje atua uma das Lojas Colombo: a marca, desenho da casa e a inclinação do antigo telhado marcados pela poeira do tempo na parede lateral da Brisa Calçados – ou - o vizinho-lendário Estúdio Geremia.

Visualizar esse detalhe, desapercebido por milhares de pessoas que por ali passam todos os dias, encheu de alegria meu coração. À esquerda, a também lendária Farmácia D’Arrigo, com as fachadas originais, pelo menos no piso superior. Aliás, o térreo da maioria desses casarões de antanho era ou ainda é comercial.

Bem, embora a Vila Braghirolli não mais exista materialmente, tem presença em fotos, documentos e no espírito de quem por ali passou, nas lembranças de muitas pessoas. Admiremos, pois, esse casarão de dois pisos. No térreo, a loja comercial de Rodolpho Braghirolli – “Premiada Alfaiateria de Rodolpho Braghirolli – Fazendas – Roupas Feita – Chapeos e Miudesas.” Esses dizeres pintados na fachada contornam as três portas em arco do estabelecimento, e no andar acima, o da residência da família, três janelas, com o mesmo design das portas simetricamente posicionadas. Um toldo de lona esvoaça sobre a loja e, para completar a imagem retrô, há um lampião na calçada, remanescente do tempo da iluminação a “gaz acetylene”.

Antes de adentrarmos por este portão de ferro, ao lado das portas da “alfaiateria”, apresento a família – Rodolpho Braghirolli, o patriarca, alfaiate italiano, chegou ao Brasil em 1878. Casou-se com Josephina, também vinda da Itália (Dona Bepa). Eles tiveram sete filhos – Hygina – Bianca (falecida adolescente) – Sylvia – Dyna – Lyna – Yolanda e Aldo.

O casal Rodolpho e Josephina (Dona Bepa) Braghirolli

Toda a família participou de inúmeros projetos culturais no passado de Caxias do Sul. Rodolpho Braghirolli foi um dos fundadores do Grupo Teatral Caxiense e um dos doadores do terreno para a construção da primeira sede do Clube Juvenil. Comerciante próspero, visionário, foi um dos fundadores e presidente da Sociedade Príncipe de Nápoles (embrião da Sociedade Caxiense de Mútuo Socorro). A esposa, Dona Bepa, aos noventa e dois anos ainda exerceu o voto. Cito esses detalhes porque denotam compaixão – e patriotismo, sentimentos “em extinção”, nos dias de hoje. Conheci e convivi com as tias Lyna e Dyna e com Yolanda, minha sogra, mãe de meu marido José Afonso.

Apresentados os principais moradores da casa, entremos. Sejam todos bem-vindos nesse exercício de imaginação, memória, audácia e convicção. Ouçam (...), a batida do portão. Uma vez ultrapassado, temos duas opções: primeira – passemos por baixo da escada e aventuremo-nos por um corredor extenso, ao longo da casa, úmido, meio lúgubre, repleto de verde, de musgos, samambaias, bananas do mato, costelas de Adão, glicínias, buganvílias e outros tipos de trepadeiras, emaranhadas, misteriosas... até chegarmos à escada de pedras sombreada por caramanchões. Bem ali, Suelly Dal Cortivo (filha de Hygina – a primogênita de Rodolpho e Dona Bepa), portanto neta dos patriarcas, costumava namorar com seu futuro marido - Oswaldo Ribeiro Mendes. Sob o olhar vigilante das tias, por certo. Lindo isso, não? Romântico.

Ou... como segunda alternativa, após o som da batida do portão, há dois lances de escada com corrimão, rodeados de verde-vegetação e vasos de cimento com folhagens. Trrrrimmm! A porta abre-se em duas folhas. Esta é a sala de visitas. Ambiente à meia luz, em parte pelas lindas, pesadas, franjadas cortinas de crochê das janelas que dão para a Júlio. Sofás. Poltronas com acento de palhinha. Estantes com livros, mesinhas cobertas por toalhinhas de renda, tapetes, fotos de santos, dos patriarcas e outros familiares, pequenas colunas com folhagens, objetos diversos, obras de arte. Um sofá, com almofadas. Contudo, todo esse décor fica em segundo plano quando nossos olhos pousam no piano, imponente, vindo de Nova York, de navio, nos anos 20 do século passado. Lembro que havia duas luminárias nas laterais iluminando o teclado. A Musa da Música – estátua do atelier Zambelli - e o marcador de compasso musical sobre o piano complementavam este recanto adorável.

O imponente piano novaiorquino na sala

A Dyna o piano pertencia. Ela diplomou-se em Música pelo Conservatório de Porto Alegre. Ah, esse instrumento musical foi o companheiro de toda a vida, da alma, da dedicação e felicidade da Tia Dyna - professora de música na Escola Normal Duque de Caxias e organista do Coro da Catedral. Um violoncelo e dois violinos ao lado do piano. Muitíssimos ensaios com o coral naquela sala. Música. Alegria. Vibração. Amizade. Convivências. Vidas cruzadas, pessoas dedicadas à música, saraus ali na sala do piano, até um casamento civil (o meu) foi realizado ali. Aquela ambiência possuía uma aura de magia, e se alguém prestasse atenção, veria ninfas, fadas, anjos, gnomos, silfos e sílfides e talvez Euterpe – musa da música – na mitologia grega, talvez ...

Com o espírito tocado, pleno de sinais de leveza, sons musicais e canto das sereias... da sala, avancemos por este longo corredor e visualizemos as várias portas dos quartos: apenas uma rápida olhada no primeiro deles. Três camas em ferro trabalhado nas cabeceiras, lençóis de linho engomados, bordados com monogramas, cômodas e mesinhas de cabeceira de madeira entalhada com tampos de mármore e armários antigos, muito altos (utilizados também para vestidos longos, de festa). Esta outra porta vai dar no sótão. Nunca subi por esta escada. Como me arrependo disso, hoje! Imagino os baús, os leitos dos sobrinhos e outros móveis rústicos, e objetos “descartáveis” em meio a uma bruma e muitas teias de aranha...

A neta Sueli e seu namorado Oswaldo Ribeiro Mendes, na escada que leva aos jardins (1934)

Deixemos as demais portas dos quartos de dormir fechadas em seus mistérios... e sigamos ainda pelo corredor até as janelas invadidas pelas glicínias com os troncos e ramos entrelaçados em suave perfume pelos cachos de cor lilás. Nesta parte há uma mesinha com um telefone preto. Sim! Um telefone. Um dos primeiros de Caxias. Para fazer uso dele, podia-se acomodar em uma chaise-longue forrada em veludo, com franjas e almofadas bordadas – o número era 2743.

Bem, sigamos... estes três degraus daqui do final do corredor nos levam à sala de refeições. Ela é espaçosa. Uma lareira aconchegante. A maior parte dos momentos inesquecíveis e afetuosos em família foram vividos ali. Uma mesa para oito lugares, um aparador, cristaleira, tapete, sofá e mais almofadas.

Psiu! Escutemos, por um segundo... o crepitar do fogo na lareira no inverno... alguns acordes do piano lá de longe, da sala de entrada... o canto dos pássaros ... os zumbidos dos insetos e das cigarras no verão... as árvores ao vento... a voz da tia Lyna explicando à Dona Nayr – empregada-cozinheira-companhia-confidente-amiga como se deve fazer para tirar o excesso de água da moranga para que os tortéis fiquem perfeitos e os bifes à milanesa com o pão feito em casa ralado. Quanto ao macarrão da Mimimi (tia Lyna), ela fazia um charminho e mantinha um certo segredo de sua receita. Impressionava. Tento imitar, coloca-se muito espinafre no molho. (Peço desculpas a quem lê, pelas lembranças que me invadem e interrompem a visita e a descrição da Vila Braghirolli.)

Dyna Braghirolli no jardim da casa, na famosa nevasca de 1942

Do aconchego desta sala íntima da família chega-se à cozinha tradicional, com fogão a lenha e a gás, panelas de ferro, demais utensílios, uma grande mesa rústica, prateleiras...

Por outra porta da sala, um banheiro enorme, com banheira, folhagens e tudo o mais. O curioso – entrava-se nele pela sala e saía-se dele por outra porta que dava para os jardins. Se assim o “freguês” quisesse.

Ah, os jardins... no plural mesmo. Em vários planos. Lindos espaços. Um “L”. Quase até a Rua Sinimbu e avançava em lateral pelos fundos da Farmácia D’Arrigo. Misto de pomar, jardim e horta. Caramanchões, bancos, um aquário de cimento com peixinhos vermelhos que volta e meia se escondiam sob as plantinhas aquáticas flutuantes, samambaias, hortênsias, camélias, abacateiro, nogueira, figueiras (com os frutos delas fazia-se figada em um tacho de cobre), laranjeiras, pessegueiros, rosas, alfaces, tomates, sálvia, salsa, cebolinhas, rosas, gérberas, chás...

Com capricho, as bordas dos canteiros eram contornadas por violetas cheirosíssimas.Quantas imagens poéticas nos ventos das estações!! Pássaros. Borboletas. As cigarras nos últimos dias ensolarados dos verões, o caracol nos dias úmidos de inverno, os colibris nas primaveras e todas as cores douradas do outono.

Esta visita não termina por aqui – no fundo do lote havia um galpão coberto de folhagens e envidraçado. Abrigava não só utensílios de jardinagem. Ali, as Braghirolli davam aulas complementares às alunas da escola e costuravam, bordavam e confeccionavam roupas para os pobres.

A casa e tudo o mais existiu por cem anos aproximadamente – construída um pouco antes de 1890 - foi demolida no início dos anos 80. Assim como a Vila Braghirolli, inúmeras edificações antigas, de enorme valor histórico, social e artístico, sumiram da paisagem urbana de nossa Caxias. Hoje restam poucas, nesse estilo Art Nouveau. Infelizmente, a consciência patrimonial é uma evolução recente.

Incalculável o número de pessoas que passaram pelo casarão dessa família tradicional desde seus primórdios. Desde a freguesia da loja e da alfaiataria, amigos, parentes até aos colonos que vinham à cidade vender seus produtos e fazer outras compras. Soube que o avô Rodolpho permitia-lhes que acomodassem os cavalos nos fundos da loja e havia camas para passarem a noite...

Os amigos dos filhos, as alunas das tias, de música, de costura e de bordado, os integrantes do Coral da Catedral Diocesana, o Grupo de Vindimeiras da Exposição Reclame no Clube Juvenil em 1916, padres e freiras (a família toda de princípios religiosos profundos e atuante em vários setores sociais e benemerentes). Aldo, o único filho homem, era farmacêutico. Sylvia – foi Diretora da Cruz Vermelha da Revolução de 1930 e professora de trabalhos artísticos em bordado. Dyna, como já a apresentei, foi professora de música e tocava o órgão da catedral, junto ao Coral, recebeu o Troféu Caxias por serviços prestados à comunidade. Lyna foi professora de Educação Física de “metade” de Caxias – inesquecíveis os desfiles de 7 de setembro organizados por ela, em especial com a Banda do Carmo. Era uma figura adorável, bem-humorada, vaidosa. Poderosa com sua saia pregueada, os sapatos bicolores de salto grosso, e o apito. Assim ela fazia “chover”. Yolanda, minha sogra, casou muito jovem, teve nove filhos. Quanto aos filhos homens, tivessem razão ou não, ela tomava o partido das noras, sempre. Sábia, ela. Seus olhos tão azuis, ela era como um anjo, cantando músicas de óperas enquanto cozinhava para a família.

E... haveria muito mais a contar... lembranças e registros que poderiam inspirar um romance. Esse entrelaçar de vidas neste casarão não será desfeito pelos ares do tempo... ainda permanece vivo sob outras formas: dentre os descendentes, estão os meus filhos, Alexandre e Fabiana, bisnetos de Rodolpho e Josephina pelo lado materno – a vó Yolanda. Acredito que tudo o que existe no Universo esteja conectado além do tempo e do espaço.

Dizem – que as casas antigas têm alma. Posto que a alma é imortal!!

(Tia Dyna !!! Te devia essa!!!)

FOTOS: Marilia Frosi Galvão/Álbum de Família

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista

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