Caxias do Sul 18/05/2024

Uma noite no arquivo

Visita ao templo da memória local induz a encontros com personagens fascinantes da nossa história
Produzido por Paulo Damin, 06/08/2022 às 08:34:10
Foto: ARQUIVO PESSOAL

A nostalgia, dizer-lhes-ei, é um barato. Há que cuidar, inclusive, porque vicia. Sob aquela capa de inteligência (“Vou ali no museu olhar uns mapas”), esconde-se toda uma dinâmica tão grave quanto beber graspa às duas da tarde no Bar 13. O sujeito começa olhando inocentemente uns mapinhas coloridos à mão e, quando vê, está exercitando a miopia ante uma foto do centro, perguntando-se, em nível terminal, “como se chamava a praça nessa época?”.

Mas eu que, por dever literário, não posso ter medo do perigo, saí na noite de cinco de agosto para visitar o Arquivo Histórico de Caxias. Já na entrada, diante de um Ford 29, estava o doutor Angelo Carbone explicando para seus correligionários como havia se tornado um dos melhores personagens de Erico Verissimo, no romance O Retrato.

“Arretrato?”, provocou Joanim Pepperoni, ciente de que essa palavra quer dizer “atrasado” na língua de Ercole Galló. O doutor Carbone não deixou por menos e chamou Celeste Gobbato para dar uma palestra sobre seu Manual do vitivinicultor brasileiro, o que teve o efeito de atiçar a turba disposta a ver um confronto político na avenida Júlio de Castilhos. Este, por sinal, estava presente e lançou mão de uma tesoura com a qual inauguraria a Festa da Uva de 1931, caso não tivesse morrido em 1903. Quem por fim resolveu a refrega foi Italo Balen, declamando um poema satírico sobre a malandragem dos comerciantes locais.

Foi durante os aplausos ao poeta que vi uma jovem, chamada talvez Ada, sem dúvida Ada Therezinha, subir as escadas de braços dados com um jovem cavalheiro chamado, suponho, Enio, certamente Enio Luiz. As dobras do vestido dela e a inclinação do chapéu dele indicavam que haviam se casado na catedral, no dia 9 de fevereiro de 52, um belo sábado, às 15:15. Segui-os arquivo adentro, como se também eu quisesse me casar com alguma professora chamada, digamos, Ieda, da Sexta Légua, e esbarrei no Abramo Eberle, que só não caiu porque se apoiou em sua bengala banhada a ouro. As bestemas, porém, foram inevitáveis e só consegui me livrar de um duelo armado acerca de futebol porque o Mario Gardelin me puxou para dentro de um manuscrito em que estava a Loraine Slomp Giron xingando um aluno, vermelho demais.

Eu estava José Regis Prestes a concluir minha monografia sobre caingangues quando João Spadari Adami gritou, brandindo a navalha do fundo da sala, que a cadeira estava vaga para o próximo. Saltei para lá e pedi para ele fazer barba, cabelo e bigode enquanto me detalhava o nome e a origem vêneta de todas as professoras das escolas de São Luiz, em 1919.

Depois, já que eu estava bonito, tirei um retrato com o Ulysses Geremia, que vocês podem conferir ainda hoje, no acervo digital do Arquivo.

Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.

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