Caxias do Sul 26/04/2024

Um mistério da literatura: Shakespeare era italiano?

Teoria foi levantada há quase um século por um jornalista italiano, e traz elementos surpreendentes
Produzido por José Clemente Pozenato, 22/05/2020 às 08:14:37
Foto: Marcos Fernando Kirst

POR JOSÉ CLEMENTE POZENATO

Em 1927, um jornalista italiano, chamado Santi Paladino, publicou uma reportagem em que defendia a tese de que William Shakespeare era italiano. De lá para cá, muitos estudos foram feitos para examinar essa hipótese, que parece cada vez mais verdadeira. Pessoalmente, meu voto é a favor dela.

Sempre me pareceu estranho que duas das tragédias shakespearianas de maior sucesso se passam na Itália; Romeu e Julieta, na cidade de Verona, e Otelo, o Mouro de Veneza, em Veneza. Tudo bem, Hamlet se passa na Dinamarca, e ninguém cogitou que o autor pudesse ser dinamarquês...

Mas há outros dados a serem considerados. Shakespeare escreveu dezesseis comédias. Dessas, apenas quatro não têm relação com a Itália ou com obras de autores italianos. Mas as quatro são de temas clássicos ou do folclore europeu, sem relação com o mundo britânico. Veja-se a relação das outras doze:

- Os dois fidalgos de Verona: ambientada em Verona.

- As alegres comadres de Windsor: baseado em Le tredici piacevoli notte, de Gianfrancesco Straparola, ambientada em Pisa.

- Medida por medida: a peça é ambientada em Viena, mas é baseada em Hecatommithi, de Giraldi Cinthio. E os nomes dos personagens não têm nada de vienense: Vincenzo, Ângelo, Scalo, Giulieta, Francesca etc.

- A comédia dos erros: trama ambientada em Siracusa, cidade da Sicília.

- Muito barulho por nada: ambientada em Messina, na Sicília.

- O mercador de Veneza: cenário, personagens, tudo é veneziano. Baseada no conto Il Pecorone, de Giovanni Fiorentino.

- A megera domada: a trama se passa em Pádua, e todos os personagens são italianos.

- Tudo está bem quando termina bem: trama ambientada em Paris, mas Inspirada na história de Giglietta di Narbona, do Decamerão de Boccaccio (nona novela do terceiro dia).

- Noite de reis – ou o que quiserdes: personagens italianos, a começar por Viola. Baseada na peça italiana Gl’ingannati, de 1531.

- Cimbelino: até o título (que poderia ser traduzido por Sininho) é italiano. Baseada na nona história do segundo dia do Decamerão de Boccaccio.

- A tempestade: os personagens principais são Alonso, rei de Nápoles, e Próspero, duque de Milão.

- Conto de inverno: peça ambientada na Sicília, quando pertencia à Grécia.

Além disso, há ainda as tragédias com temas e tramas da Roma Antiga: Coriolano, Tito Andrônico, Júlio César, Antônio e Cleópatra. Só não têm relação com a Itália cinco das onze peças trágicas, entre elas Macbeth, ambientada na Escócia, Hamlet, na Dinamarca e Rei Lear, extraída do folclore bretão. De tema exclusivamente inglês, ficaram apenas os dramas históricos, em número de sete.

Teria Shakespeare sido um italiano?

E o que o jornalista Santi Paladino tinha para contar? Como bom siciliano, percebeu que a comédia “Muito Barulho por Nada” continha, em inglês, expressões verbais típicas de Messina, cidade da Sicília. Descobriu ainda que havia uma peça em dialeto siciliano com o título de “Troppu trafficu per nnenti”, isto é, muita confusão por nada. E caiu em suas mãos o livro de um desconhecido, chamado Michelangelo Florio, com trechos parecidos com diversas passagens de Hamlet.

Saiu então a investigar quem seria esse Michelangelo Florio. E descobriu que um Michele Agnolo Florio nascera em Messina, em 1564. O sobrenome da mãe era Crollalanza. Curiosamente, traduzido para o inglês, Crolla é igual a Shake, e Lanza é igual a Speare, o que dá Shakespeare, que pode ser traduzido por “sacode a lança”!

Seguindo na investigação, descobriu que Michelangelo Florio era de religião calvinista e, por causa disso, tivera que fugir da Sicília para não acabar na fogueira da Santa Inquisição. Depois de perambular por várias cidades da Itália, da França, da Espanha, acabou indo para Stratford, na Inglaterra. Nessa época, desde 1534, a Igreja Anglicana, também de inspiração calvinista, já havia se separado de Roma. Não havia, portanto, nenhum problema para o herege exilado permanecer na Inglaterra.

Outra coincidência: segundo a história da literatura, foi em Stratford-on-Avon que nasceu William Shakespeare. Pois em Stratford vivia também um Crollalanza, oriundo da Itália, talvez parente de sua mãe, que perdera um filho com o nome de William. Ele teria adotado o fugitivo, dando-lhe o nome do filho e também seu sobrenome já traduzido para o inglês. Ali nasceu, então, William Shakespeare: em Stratford-on-Avon!

Como tinha bastante erudição, transferiu-se para Londres em busca de um espaço em que houvesse mais vida cultural, e ali se inscreveu num clube, registrando-se com o nome de Michelangelo Florio. Um clube que a tradição atesta ter sido muito frequentado por Shakespeare, embora seu nome não conste nos registros.

Com tantas coincidências, é difícil não admitir que Shakespeare era, de fato, um emigrado italiano. E a história não termina aqui. Os poemas e sonetos de Shakespeare também escondem segredos de origem.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.

e-mail: pozenato@terra.com.br

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