Caxias do Sul 04/05/2024

Um exemplo de bondade

Histórias reais universais podem quebrar os preconceitos entre os povos
Produzido por Luiz Carlos Secco, 24/03/2023 às 09:05:26
Foto: ARQUIVO PESSOAL

No dia 4 de novembro de 1979, estava nos Estados Unidos participando de um curso intensivo de inglês na Wayne State University, em Detroit, data que entrou para a história pela invasão e ocupação, ordenada pelo aiatolá Khomeini, da embaixada norte-americana em Teerã, por estudantes e militantes islâmicos.

Por coincidência, o nosso pequeno grupo de alunos era formado por três brasileiros, um colombiano, um libanês e três iranianos. Pela distância e desconhecimento geográfico, silêncio do professor, naturalmente para não envolver assuntos políticos que pudessem provocar alguma divergência entre os alunos e por respeito aos companheiros iranianos, ninguém abordou o tema durante o período do curso, cerca de 45 dias.

Também só agora, nesse momento de reflexão e lembrança, consigo imaginar que um jantar, organizado por um dos professores em sua casa para todo o grupo, tinha como objetivo demonstrar que estávamos reunidos para aperfeiçoamento pessoal e profissional e que nenhum episódio poderia provocar um clima que comprometesse o aproveitamento do curso.

Podem imaginar a situação constrangedora de estarmos em pleno Estados Unidos, estudando inglês em um pequeno grupo de oito pessoas e quase a metade ser de iranianos?

Confesso que, naquela época, a minha limitada cultura internacional me fez ter um sentimento de prevenção com a cultura da República Islâmica do Irã, mesmo sendo uma das mais antigas civilizações do mundo e sucessora da Pérsia.

Mas o comportamento dos meus colegas iranianos e também do libanês, me fez mudar os meus conceitos. Todos muito respeitosos, me tratavam como mister Secco e sempre me consultavam quando o assunto envolvido fosse ocidental e desejavam algum esclarecimento.

Sobre esse relacionamento, só em uma oportunidade não pude ajudá-los e nem a mim mesmo, quando um dos professores nos deu o prazo de 30 minutos para contarmos a história de uma pessoa boa, sem utilizar esse adjetivo explicitamente.

Engraçado é que nenhum dos alunos entendeu o pedido do professor e, por isso, ninguém realizou o trabalho.

Quando o professor regressou à sala de aula e mencionou a sua tradicional saudação “meus inteligentes alunos”, demonstrou frustração ao saber que ninguém entendeu o seu pedido. Mas, como exemplo e para que entendêssemos, contou a história de um personagem fictício explicando a sua bondade, sem mencionar a palavra, conforme havia pedido.

Isso me fez lembrar de um episódio ocorrido na fase em que trabalhei no jornal O Estado de São Paulo e vivenciei um exemplo de bondade do repórter fotográfico Ivo Barretti, que foi chefe do Departamento Fotográfico. Na década de 1960, nem ele e eu tínhamos condições financeiras para adquirir um automóvel e, todos os dias, no final do expediente, quase sempre já na madrugada, caminhávamos o percurso entre a sede do jornal, na Rua Major Quedinho, e o Largo Paissandu, para tomarmos o ônibus que nos levava próximo a nossas casas.

Era dia de pagamento de salário, feito em dinheiro vivo porque não existia a atual moderna cultura da transferência eletrônica, muito mais segura e com menor trabalho. Ao passarmos pela Rua Xavier de Toledo, próximos ao teatro Municipal, e vermos um sem-teto dormindo na calçada, o Ivo Barretti parou, tirou do bolso o envelope de pagamento e separou uma cédula de 100 cruzeiros, abaixou-se e enfiou-a no bolso do sem-teto.

Ao me ver, atônito com o seu gesto, Ivo fez o seguinte comentário: “gostaria de ver a surpresa desse homem, amanhã, quando puser a mão no bolso e encontrar o dinheiro. Não vai entender nada ou achar que foi um milagre de Deus”.

Então, ao me lembrar desse exemplo de bondade, pedi ao professor para apresentar, no dia seguinte, a história do Ivo Barretti, na classe para os colegas. Para minha surpresa, foram os iranianos os que mais apreciaram o gesto de Barretti e me saudaram com aplausos.

Depois que se aposentou, num dia em que liguei para cumprimentá-lo, Ivo em tom de lamento e desânimo, antes um repórter vibrante, me fez o seguinte comentário: “agora, minha vida é um eterno domingo, sem nada prazeroso para fazer”.

A ocupação do consulado norte-americano em Teerã, mais do que afetar as relações entre os dois países e isolar durante 444 dias 52 norte-americanos, mantidos como reféns até 20 de janeiro de 1981, em apoio à Revolução Iraniana, iniciou uma crise internacional que gerou reflexos em todo o mundo.

Manifestantes iranianos queimam a bandeira dos EUA defronte àembaixada norte-americana em Teerã, em 1979 (Foto: El País)

Tudo começou meses antes, com a queda do Xá do Irá Mohammad RezãShãh Pahlavi, deposto em fevereiro de 1979 por revolucionários do Partido Islâmico. Depois disso, no final de outubro de 1979, o Xá exilado e doente foi internado nos Estados Unidos para tratamento de câncer. No Irã, houve um clamor imediato e tanto Khomeini quanto grupos de esquerda exigiram o retorno do Xá ao Irã para julgamento e execução.

Como não foram atendidos, no dia 4 de novembro de 1979, jovens islâmicos invadiram o complexo da embaixada e sequestraram sua equipe. Nos Estados Unidos, analistas políticos acreditaram que essa crise foi um dos principais motivos para a derrota do presidente Jimmy Carter nas eleições presidenciais de 1980.

No Irã, a crise reforçou o prestígio do Aiatolá Khomeini e o poder político daqueles que o apoiaram e se opuseram a qualquer normalização das relações com o Ocidente. A crise também marcou o início das sanções econômicas contra o Irã, o que enfraqueceu ainda mais os laços econômicos entre os dois países.

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Luiz Carlos Secco trabalhou, de 1961 até 1974, nos jornais O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, além da revista AutoEsporte. Posteriormente, transferiu-se para a Ford, onde foi responsável pela comunicação da empresa. Com a criação da Autolatina, passou a gerir o novo departamento de Comunicação da Ford e da Volkswagen. Em 1993, assumiu a direção da Secco Consultoria de Comunicação.

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