Caxias do Sul 03/05/2024

Sexta-feira treze na Colônia – ainda

...em que segue e conclui-se a saga do colono que usou graspa para negociar com o...
Produzido por Paulo Damin, 20/10/2023 às 08:10:09
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Mas aquele gringo era “muito dado” mesmo, como dizem os brasileiros.

No capítulo anterior, a gente tinha deixado ele lá na encruzilhada, diante do Berliche. Aquela cerração. As corujas e os urutaus chorando pra lá e pra cá. Atrapalhando o entendimento do talian que os dois falavam.

“Col tuo sangue… col tuo sangue… col tuo sangue…”, dizia o Berliche, tentando fazer uma voz grave (a graspa ajudava).

Isso de “col tuo sangue” já era lá pelo meio da conversa. O Demo não tinha tempo a perder (imagina, atender todas as encruzilhadas do mundo nas sextas-feiras treze: pior que isso, só o trabalho do Papai Noel).

O gringo contou que tinha ido na encruzilhada – de grappa, pipoca e farofa – atrás de riqueza, noiva e terra, aí o Demo disse que isso tinha um preço. Sentindo o sufoco no bolso, o gringo perguntou que preço – e o Berliche, nítido e obscuro, respondeu “com o teu sangue” três vezes, conforme o protocolo.

“Ok”, disse o gringo, que falava também inglês. “Onde eu assino?”

O Demo tirou um livro do rabo e entregou pro homem.

“Nanetto Pipetta”, leu o gringo. “Ma é meu nono!”

“Justo”, disse o Demo. “Assina embaixo do nome dele”.

Pepito Nanetta, ele escreveu, sem saber direito onde botar os dois tês.

“E agora?”, disse o gringo.

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“Ora mi son el to paron”, disse o Berliche, e traduziu, por saber que estamos lendo:

“Agora eu sou o teu padrão”.

Mas traduziu errado. Ele deve ter querido dizer que era o “patrão”, não o “padrão”.

Mandou o gringo de volta no banco. Lá, segundo o Demo, teria uma quantia que faria qualquer colono se sentir rico.

“Preciso entrar na fila? Não posso baixar pelo celular?”, perguntou o Pepito.

Aí o Diabo fez uma carinha assim de quem já tinha feito há séculos um pacto com o sistema bancário. O gringo só baixou a cabeça e mudou de assunto:

“E la morosa?” – ou seja, “e a noiva?”

“Eco”, disse o Berliche.

E súbito surgiu a Loiva na encruzilhada, com os três filhos que ela tinha feito com o Ivan – aquele traste que largou a família pra ir morar no Apanhador.

“Orca…”, começou o Pepito, ou seja: “Uta…”

Só restava a esperança de recuperar aquele metro de terreno do vizinho.

“Esse vai ser mais complicado”, disse o Demo, em brasileiro perfeito. “Eu não tenho como mexer nisso”.

“Ué”, disse o gringo, entrando também no dialeto local. “Tu não é o Berliche todo poderoso das malandragens?”

“Acontece que… antigamente, antes dos colonos chegarem, isso aí já era terra kaingang. Pra negociar aquele meio metro ali, tu tem que falar com outras entidades…”

O rosário de bestêmias que o Pepito soltou ruborizaria até mais o mundano dos capuchinhos.

Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.

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