Caxias do Sul 04/05/2024

Saudades, Boldrin

Apresentador e músico que enfocava a arte do "Brasil real" vai fazer falta
Produzido por Fernando Pereira, 14/11/2022 às 08:30:30
Fernando Pereira é jornalista, fotógrafo e professor de Jornalismo Cultural
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Voltando para São Paulo, ouço no rádio do carro a notícia do falecimento de Rolando Boldrin (ocorrido em 9 de novembro). Ele era único, embora devesse haver muitos, pois dessa forma o mundo seria muito melhor, tanto pela arte com que ele nos brindava ao cantar, compor, escrever, declamar, apresentar e encenar. Mesmo com todo o sucesso alcançado, permaneceu um homem sensível e atencioso.

Filho de Amadeo e Alzira, sétimo de doze filhos do casal, Boldrin começou sua carreira com um dos irmãos nos anos 50, com a dupla Boy e Formiga. Ao longo dos anos, foi percorrendo seu trabalho como artista com brilhantismo, com canto, composição e apresentação. Lembro-me de todos os seus programas: Som Brasil, na Globo; Empório Brasileiro, na Bandeirantes; Empório Brasil, no SBT; Estação Brasil, na CNT; e atualmente na TV Cultura, com Senhor Brasil.

Rolando Boldrin também escreveu muitos livros e mostrou todo o seu talento como ator, inclusive no cinema. Nele cabiam todas as vozes escondidas, importantes vidas estradeiras e cancioneiros, todas as gargantas e vozes desse Brasil desconhecido que fizeram gritar num canto livre, aberto, digno e tocante à alma brasileira.

Mais do que todos os títulos que se dedicou ao longo da carreira, seu papel principal era resgatar o Brasil. Ele tinha um projeto que chamava "Tirar o Brasil da Gaveta", um trabalho pouco celebrado pela imprensa. Se a justiça for feita, Rolando Boldrin estará sempre ao lado de Caetano, Milton, Betânia, Gal - que nos deixa agora -, Gil e tantos outros. Infelizmente, Boldrin acabou ficando numa segunda prateleira, mas o mais importante é que dessa prateleira abriram-se muitas gavetas que ele sabia revelar com maestria.

Boldrin era conhecido como o "Senhor Brasil" (Foto: Divulgação)

Havia diversidade em seus programas: uma hora, era Benito di Paula; outra, Criolo, Milton Nascimento, Rita Lee... Além disso, não admitia, de nenhuma maneira, instrumentos que não produzissem sons naturalmente. Boldrin não queria saber de músicas cheias de apetrechos e aparatos, queria tudo o mais natural possível. Na real, ele visava a música brasileira, ou, como ele costumava declamar num verso do poeta paraibano Zé da Luz, um Brasil brasileiro, sem mistura de estrangeiro, um Brasil nacional. Tinha paixão pelo que era caipira, pelo que era de verdade, cheiro de terra, cheiro de mato. Era uma pessoa extremamente gentil, tímido ao extremo, mas muito gentil.

Eu o conheci em 1981, duas semanas antes da estreia do seu programa na Rede Globo, Som Brasil. Fui convidado a fazer fotos do lançamento do seu disco “Caipira” (que tenho autografado). A última vez que conversei com Boldrin foi em 2018, quando o convidei para participar de uma banca na Universidade Presbiteriana Mackenzie (em São Paulo). A proposta era de avaliar o trabalho de uma aluna que fez um documentário sobre Felisberto Formiga, jornalista, poeta, também paraibano e que era muito amigo de Rolando Boldrin. Infelizmente, na data da banca, ele não estava em São Paulo e não pôde participar. Agradeceu imensamente o convite, pois nunca tinha participado de uma banca... que bom seria ter Rolando Boldrin no Mackenzie fazendo uma banca.

Como eu disse, ele tirou muita gente da gaveta, revelou muitos artistas ao público e fez grandes composições, como "Amanheceu, peguei a viola" e "Vide, vida marvada". O fato é que Rolando Boldrin, para mim e para muitos, é eterno. Junto com ele, parte da música caipira e música de raiz se vão. Nossa música perde muito. O Brasil perde muito. Sem Rolando Boldrin, o Brasil fica um pouco mais chato, menos musical.

E Boldrin foi cantar e contar seus "causos" em outro plano. Se tem alguém que vai fazer falta nesse Brasil, é Boldrin. Em seus programas, o "caipirão" de São Joaquim da Barra mostrava um Brasil real, verdadeiro. Não o Brasil da grande mídia. Um Brasil da viola, da catira, do martelo agalopado, do cururu, do samba de roda, da ciranda, do encantado... Boa viagem, mestre.

Saudades, Boldrin.

Fernando Pereira é jornalista, fotógrafo e professor de Jornalismo Cultural da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).

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