Caxias do Sul 25/08/2025

Quando se faz demais

O caminho que leva da gratidão à ingratidão é sutil e inesperado
Produzido por Neusa Picolli Fante, 21/08/2025 às 08:10:05
Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas
Foto: Morgane Coloda

O que é ser grato por algo ou por alguém? Entendemos gratidão pelo reconhecimento de algo feito.

Particularmente, compreendo gratidão quando carregamos em nós a contemplação da vida, de como vivemos e nos relacionamos nesse grande e complexo (por vezes) universo. É também gratidão quando olhamos para todos os tempos que nos envolvem (presente, passado e futuro), e fazemos eles ecoarem em nós.

Pode-se também ter gratidão pelo que se fez e, muitas vezes, pode-se ter realizado demais; ou, em contrapartida, haverá rejeição.

De qualquer forma, quando se faz muito, o outro pode acreditar que sempre vai ser assim, isto é, espera ter sempre o que lhe é oferecido. Isso pode criar dependência ao que recebe.

E, quando a pessoa, por alguma razão, não faz o que estava acostumada a fazer pelo outro, pode chegar até a rejeição por parte daquele que estava acostumado a receber.

Como se passa tão depressa da gratidão à ingratidão? Não compreendemos. Muito menos quando se refere a alguém próximo, pelo qual fizemos demais. Sim, precisamos enxergar que quem mais se equivocou foi quem muito fez e não estabeleceu os limites necessários.

Talvez porque não é só uma mudança de ótica, é muito mais profundo. Os ganhos ilusórios de dar em demasia provocam a espera pela continuação desses ganhos. Quando eles não vêm, chega-se à ingratidão como uma maneira de punição.

Refere-se a que, no ato de não receber mais benefícios, o ingrato gostaria de continuar vivendo os privilégios que vivia. Como não chega mais até ele o cuidado (ilusório), ele desqualifica, esquece tudo de bom que viveu com aquela pessoa. Deixando um gosto amargo além do que é vivido.

Se colocar num lugar que não é seu faz com que o outro deseje mais de você. O que não é seu para dar, para fazer, faz com que o outro queira de você o que era dever dele conquistar ou de um outro fazer; faz com que aquele que recebe cobre isso incessantemente para você. Mas não era sua obrigação, então por que você deu demais?

Colocar no equilíbrio é dar não demais nem de menos, é dar o justo, o que é necessário para a relação...

Grandes abandonos me fazem inconscientemente estar muito disponível. Afinal, preciso agradar para que alguém goste de mim. Preciso compensar e fazer demais pelo outro, para não me colocar em risco de ser deixado.

Enxergar o outro como prioridade é colocá-lo em um lugar superior, de predileção.

Esse dar demais tem um tempo, chega um momento que começo a me enxergar. “Dei tanto até exaurir, secar”, me dizem alguns. É ali, quando paro de dar, que o outro não entende e se revolta contra mim. Num entendimento de que: você não me dá mais, então é meu inimigo.

Tenhamos em nós o humano como humano, passível de enganos de um lado ou de outro e, acima de tudo, que a gratidão é o suspiro do passado quando se encontra com o futuro. Ela é a contemplação da vida que ali existiu.

Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas. É palestrante e escritora, autora de oito livros: três de psicologia, três de crônicas e dois de poesia.

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