Caxias do Sul 26/04/2024

Pequenos segredos revelados

“Buena La Bailanta!”: a incrível saga de Ivan Pedro Martins
Produzido por José Clemente Pozenato, 14/11/2020 às 09:11:55
Foto: Marcos Fernando Kirst

Citei aqui semana passada uma frase do Barão de Itararé, que não era barão coisa nenhuma. Foi um jornalista gaúcho, de Rio Grande, que fez carreira no Rio de Janeiro como humorista. Assinava sua coluna também como Apporelly, que reduzia a uma palavra a extensão de seu nome completo: Apparicio Fernando de Brinkerhoff Torelly.

Dessa lembrança, outro nome inesquecível entrou em cena na minha memória: o de Ivan Pedro de Martins. Tive a fortuna de o conhecer em Porto Alegre num evento intitulado CULTUR, organizado por Mario Bernardino Ramos no final dos anos setenta, juntando Cultura com Turismo. Só para lembrar: Mário Bernardino Ramos renunciou ao cargo de prefeito de Caxias do Sul em 1975, para assumir a Secretaria de Turismo no governo de Sinval Guazzelli.

Convidado para participar do evento, fiquei hospedado no mesmo hotel em que estava Ivan Pedro de Martins, também conhecido como Ivan Martins, autor da “Trilogia da Campanha”, que inclui os romances: Fronteira Agreste, Caminhos do Sul e Casas Acolheradas. Na época, ele morava em Portugal, na cidade de Cascais, depois de passar alguns anos na Inglaterra. Com ele estava a esposa, Elsie Lessa, outro nome famoso do jornalismo brasileiro.

Tivemos longas conversas, em que me contou episódios dignos de irem para um romance... Disse como havia ido morar em São Gabriel, na “fronteira agreste” do Rio Grande do Sul, respondendo à minha primeira pergunta. Acontece que ele era dirigente da Juventude Comunista, no Rio, na época de Luiz Carlos Prestes. Com o fracasso da “Intentona Comunista”, nome com que a imprensa designou o levante de 1935, ele teve de fugir para não ser preso, como aconteceu com Prestes e outros líderes do partido.

Numa das escapadas para despistar os “tiras”, pegou uma carona no Ford Bigode de Apporelly, que morava em Copacabana e era também do partido comunista. Quando estavam chegando na praia do Flamengo, apareceu na frente deles um pneu rodando sozinho:

- Quem foi o louco que perdeu o pneu? – gritou o Apporelly.

Nem tinha terminado de gritar, o carro travou e quase capotou: o pneu que estava rodando tinha saído da dianteira do carro dele!

A fuga do Rio de Janeiro foi com nome falso e em hidroavião: em Santos, o avião despencou e caiu num mangue, mas ninguém se feriu. Em Florianópolis, passou por debaixo da ponte Hercílio Luz, quase matando de susto os passageiros. Em Porto Alegre, o hidroavião baixou no rio Guaíba, e de lá Ivan Martins foi levado por um companheiro de partido para a estação ferroviária, onde embarcou para Santa Maria e, de Santa Maria, para São Gabriel, onde foi trabalhar numa estância.

Lá, mergulhou tão fundo na cultura do peão de estância que escreveu sua famosa trilogia. Ele me contou que, até para despistar a polícia, absorveu todo o jeito de ser da peonada. Vivia feliz, porque tinha conseguido driblar os seus caçadores.

Mas – toda boa história sempre tem um “mas” –, num final de semana, foi convidado para uma festa do outro lado da fronteira, no Uruguai. Pensou consigo mesmo: vestido de peão, do outro lado da fronteira, não vai haver perigo nenhum. E foi. A festa era num galpão grande, com um monte de fardos de alfafa numa das pontas, e todo mundo dançava com música de gaita. Ivan Martins, que não sabia dançar, foi até o fundo do galpão e sentou num cubo de alfafa.

De repente, apareceu na porta um militar uruguaio, fardado. Correu os olhos pelo galpão e viu aquele sujeito sentado no pasto. Em passo marcial, avançou na direção dele. Ivan Martins ficou gelado; depois de ter passados por tantas peripécias, ia terminar preso durante uma festa e fora do Brasil. Mas aguentou firme. O militar, que devia ser um sargento, chegou na frente dele, bateu continência e disse, todo feliz:

- Buena la bailanta, no?!

Ivan Martins terminou de contar essa história soltando um suspiro. Deve ter sido o mesmo que soltou quando o militar sentou ao lado dele e puxou uma conversa em portunhol.

Alguns anos depois, em 1994, Ivan Pedro de Martins publicou o livro A FLECHA E O ALVO – A Intentona de 1935. Nessa obra ele conta todos os bastidores da revolução fracassada, um dos meus livros preferidos. Para terminar, mais um pequeno segredo: Ivan Martins foi quem serviu de modelo para o personagem Lourenço, de meu romance A Babilônia!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.

mail pozenato@terra.com.br

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