Caxias do Sul 18/05/2024

Obrigado, profe Ana

Alguns professores, mais tarde, tentaram arruinar o português para mim. Mas, graças à Ana, ele estava para sempre salvo
Produzido por Paulo Damin, 22/07/2022 às 08:20:49
Foto: ARQUIVO PESSOAL

É tudo culpa da professora Ana Canuto, que um dia chegou na sala de aula, na minha quarta série, e disse:

– Hoje eu trouxe pra vocês o meu poeta preferido.

Fiquei procurando: cadê o homem? Seria um espírito?

Em torno da profe pairava um forte cheiro de álcool. Seria o tal poeta um espírito bêbado? Estaria a própria profe embriagada?

Então ela distribuiu umas folhas mimeografadas e aprendi que o álcool vinha daquele azul aquoso no papel. E que o tal poeta preferido estava mesmo morto, mas continuava sendo uma pessoa. Um Fernando, mais precisamente. Ele, em espírito, havia psicografado um poema assim:

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

que chega a fingir que é dor

a dor que deveras sente.

Foi naquele momento que começou minha sede. Meu açude interior, de água barrenta, não dava mais conta. Mas tampouco o mar português que se me revelava: esse dava ainda mais sede. Dali em diante foi só uma corredeira atrás da fonte de água pura. Todo livrinho que me aparecia eu bebia. Uns eram como refri e me davam enjoo. Outros eram como vinho e me davam sono. Outros me enchiam de saliva e, ao mesmo tempo, me deixavam a boca seca.

Alguns professores, mais tarde, tentaram arruinar o português para mim. Mas, graças à Ana, ele estava para sempre salvo. Aos catorze anos, eu já era capaz de reconhecer os pronomes oblíquos e dissimulados. Aos quinze, já tinha coragem de abordar diretamente os objetos do meu mais desesperado desejo, que eram muito parecidos com os do meu xará Leminski. Português, para mim, era o José Régio: que ninguém me pedisse definições! Ninguém me dissesse: “vem por aqui”! A minha vida era um vendaval que se soltou.

Décadas depois, quando fui dar aula, tentei imitar o gesto da Ana: mostrar que o compromisso do professor é consigo mesmo, com a própria paixão. Entrei na sala lendo João Cabral, pois só acredito em uma educação pela pedra, de onde jorram as fontes. Não sei se funcionou. Ainda é cedo. Eu, por exemplo, levei trinta anos para vir a público dizer obrigado, profe Ana.

Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.

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